Os melhores anos da minha vida

Os melhores anos da minha vida
passaram comigo ausente, passaram
numa corrente subterrânea.
Não me apercebi de nada, distraído
com a queda das folhas,
a densa mistura de pão e desordem. 

Estava tudo em aberto, mas eu não sabia
senão de pequenas querelas,
e tímidos passos à toa, sempre à espera
de não ter futuro. Sentado, como um pobre,
sobre o poço de petróleo,
eu media com tesouras as semanas, 
misturava-me com livros, ansiava
pelo dia em que deixasse de sangrar. 

Os melhores anos da minha vida troquei-os
por isto. 

 

José Miguel Silva,
"Vista para um pátio" seguido de "Desordem"
Relógio D'Água

Finale: Allegro

Seja como for, é triste que a juventude tenha passado.
Tchekov

 

Eu ia para o amor e deste-me sexo, grande porra
a minha vida...

Isto ia ser o começo de mais um poema
sobre a idade das trevas.
Mas agora vou deitar no contentor do lixo
estes óculos escuros e falar de coisas
mais felizes como, por exemplo, a dor nas costas
que hoje me atormenta, pois dessa
conheço tudo, a origem e o significado.
(Foi ontem, ao empurrar uma estante;
a minha vida parece resumir-se a isto: 
deslocar dúvidas de um quarto para outro.)

Mas não - sejamos justos - nem tudo são aspas,
nem tudo são vespas, nem tudo mordaças.
Antes quero, na verdade, prestar homenagem
à minha senhor, ao junco de sal
onde temos morado. É ela quem sossega
o nervosismo dos meus versos e me oferece
biscoitos, chá preto, o beijo mais longo
debaixo do sol. Se vocês a conhecessem,
não afirmariam outra coisa senão a glória
(mesmo imerecida) de ser amado por quem sabe
que, na vida, apenas o amor nos poderia salvar
e o resto, já sabem - mentira.

 

 

José Miguel Silva,
"Vista para um pátio" seguido de "Desordem"
Relógio D'Água