Os melhores anos da minha vida

Os melhores anos da minha vida
passaram comigo ausente, passaram
numa corrente subterrânea.
Não me apercebi de nada, distraído
com a queda das folhas,
a densa mistura de pão e desordem. 

Estava tudo em aberto, mas eu não sabia
senão de pequenas querelas,
e tímidos passos à toa, sempre à espera
de não ter futuro. Sentado, como um pobre,
sobre o poço de petróleo,
eu media com tesouras as semanas, 
misturava-me com livros, ansiava
pelo dia em que deixasse de sangrar. 

Os melhores anos da minha vida troquei-os
por isto. 

 

José Miguel Silva,
"Vista para um pátio" seguido de "Desordem"
Relógio D'Água

[Escrito de memória]

1. Um pequeno depósito de incredulidade
no fundo dos teus olhos.

2. Um breve estremecimento no movimento do coração (do meu coração).

3. A impressão de alguém olhando-
-te atrás de ti.

4. Uma voz familiar
num sítio cheio de gente
(que só tu ouves dentro de ti).

5. Um súbito silêncio entre as
sílabas de certas palavras
que fica depois a pairar perto dos lábios.

6. A ignorância de alguma coisa
que ainda não sabes que não sabes. 

7. Uma palavra só, aguardando,
uma palavra que basta dizer ou não dizer,
abrindo caminho entre ser e possibilidade.

8. O que não sou capaz de dizer dizendo-me.

9. Eu (um lugar vazio) para sempre; tu para sempre.

10. Outras duas pessoas
de que outras duas pessoas se lembram.

11. Esse país estrangeiro, o tempo. 

 

 

Manuel António Pina,
TODAS AS PALAVRAS poesia reunida
Assírio & Alvim