Sines, 15 de Dezembro de 2013

Já não me lembro da última vez que liguei a televisão só para ficar a ouvir os desenhos animados das manhãs de domingo. Provavelmente ainda nos faltavam pernas para chegar com os pés ao chão, limpávamos o ranho às mangas do pijama e esperávamos que o pai acordasse e nos fizesse torradas. Não discutíamos desenhos animados, ou é assim que o recordo, víamos os mesmos e víamo-los vezes sem conta em cassetes de VHS agora obsoletas. 

É com este espírito que me levanto cedo da cama e me aninho no sofá com os desenhos em pano de fundo. Podia ser o Natal, que põe a família pertinho mesmo quando longe, embora o longe me seja ainda estranho. Pode ser a proximidade do meu dia, o dia que passei religiosamente a vosso lado durante 28 anos. Ou pode ser apenas esta sensação de crescer que se apoderou de mim nestes últimos dias. Que um anel no dedo certo torna tudo mais real, mais presente, e que vocês deviam estar mais perto. Há coisas que não são para ser ditas longe, pelo simples facto de que há coisas que não são para ser ditas, mas sentidas, a 4. Ou pode ser tudo isto ou nada disto. Como quando ouço os programas da National Geographic para ter o pai perto, ou quando arrumo a cozinha despreocupada com o tilintar dos pratos que me lembram sempre as manhãs de sono e rabugice em que a mãe parecia ter kilos de louça para arrumar, exactamente aquela hora e nunca mais tarde.

 

Sim, pode ser do Natal. Pode ser a Saudade. Pode ser tudo isto e uma Inês a crescer dentro de um corpo que cresceu rápido de mais para ela. 

Partida

De súbito extinguiu-se qualquer coisa,
soltou-se qualquer peça de uma máquina incompreensível
de que dependia, afinal, a minha vida;
tornou-se tudo demasiadamente literal,
até eu estar ali, sem compreender;
e até eu não compreender parecia 
algo inteiramente incompreensível;
o mundo, que via pela primeira vez,
via-o através de uns olhos que não me pertenciam,
que não pertenciam, porque eu próprio era
um acontecimento incompreensível acontecendo,
algo que me acontecia não sabia a quem;
o comboio afastava-se levando-te
para fora de mim como alguém sonhando
,
e eu e tudo o que de mim sabia desaparecera 
e ficara um sítio vazio
onde as últimas horas da tarde 
como aves extenuadas pousavam.



Manuel António Pina
TODAS AS PALAVRAS poesia reunida
Assírio & Alvim
 

Dona Júlia.

“Uma borboleta cor de barro decide arriscar
e tremula entre os espinhos da buganvília, 
sai por cima. Nada acontece, nada de mais, 
e a vida, a luta, continua. Tempo passa.”

José Miguel Silva
Serém, 24 de Março 
averno 042, 2011


A Livraria já tivera dias mais azuis, agora era apenas um raio de sol que se mostrava timidamente por entre as nuvens negras dos dias sempre iguais.

Certo dia, enquanto reorganizava os pedidos de cliente, apercebera-se de um molho de livros que pareciam esquecidos no meio das novidades editoriais. Estranhou que estivessem embrulhados em papel, agora amarelecido, e retirou-os do fundo do armário. O pacote tinha um nome escrito a lápis, um número de contacto meio apagado e a data da reserva. 


“Janeiro de 2012?!?! Mas que livros são esses?” espantara-se o Livreiro. 

I. estava cada vez mais curiosa, - “Posso abrir?” 

“Abre e liga à cliente, nos tempos que correm não nos podemos dar ao luxo de perder vendas.” 

No pacote, um livro de poesia de José Miguel Silva, “O Lago” de Ana Teresa Pereira, e um “Record”. 

“Estou sim? Dª Júlia Vilar? Peço imensa desculpa por estar a incomodá-la, estou a ligar-lhe da Livraria, temos aqui um pacote de livros reservado em seu nome e como já passou tanto tempo, gostaríamos de saber se ainda estaria interessada…”

Júlia parecia surpresa, naturalmente já não se recordava mas quis saber que livros eram. 

Li-lhe os títulos e mencionei, em tom de brincadeira, que também lá tinha um jornal, de há dez anos atrás, com notícias desportivas fresquinhas!

Ao contrário do que poderia supor, o riso na voz que esperava ouvir do outro lado da linha, dava lugar a um silêncio sufocado, tão pesado, que a fez desejar voltar atrás apenas o tempo suficiente para apagar a sua última frase. 

Entre soluços, I conseguiu distinguir um “minha querida, minha querida….” num sussurro que parecia alternar entre o riso e o choro. 
 

“Minha querida, a data do jornal… pode dizer-ma?” 

“Claro, claro… 28 de Janeiro de 2012”

Sentiu que as lágrimas lhe caíam pelo rosto, imaginou-a junto à mesinha do telefone, de frente para o espelho, as flores murchas sobre o aparador. 

“Eu ia levantá-lo nessa mesma manhã. Saí cedo, como sempre fiz, fui ao mercado e comprei as flores para a minha entrada. Uma casa com flores tem vida por si só, não concorda? - Aos sábados tínhamos esta rotina, ele ficava em casa a tratar do jardim, - havia de gostar dos meus rododendros!!! - e eu saía cedo, ia ao mercado, passava pela Livraria, trazia comigo as flores e a poesia. E o jornal. Depois do almoço sentávamo-nos no alpendre com um chávena de chá. Eu lia-lhe versos que ele não entendia, mas sorria, e isso era-me suficiente. Ele lia o seu jornal e as tardes eram calmas…

 Foi a última manhã que passámos juntos, o meu marido deixou-nos nesse dia.

When it happens,


with my eyes closed. When I trip
over your clothes on the floor
I will lay there as though that is where

I will sleep. I will talk to the couch cushions
as though they are you. I will drive you
to work every morning even though you are not

in the car. I will call random numbers
and ask strangers how their days were.
I will still make too much

food for dinner. I will still try to fall asleep
on my back. When anyone asks
how you are, what you’re doing,

where you’ve been for the past few weeks,

I will lie.

 

neil hilborn