‘Quem meus filhos beija, minha boca adoça.’

Fez na quarta uma semana que tivemos alta da cirurgia da Matilde, a primeira cirurgia, e que duro foi. Foi também na quarta-feira que tivemos alta da sua primeira bronquiolite. Têm sido, assim, semanas agitadas. No outro dia dizia à minha tia que ninguém nos tinha avisado que ser mãe era ter o coração na máquina de lavar a roupa, num ciclo infinito de centrifugação. 

Que duro foi a primeira cirurgia, caramba. Deixá-la no bloco operatório, ir buscá-la ao recobro. Não encontro as palavras para o descrever, é medo com ansiedade, é angústia, é sentir que de repente foi arrancado de nós um pedaço. Sabemos que está bem, confiamos na equipa, e ao mesmo tempo sentimos que a entregamos a um grupo de estranhos, porque o medo traz dúvidas.

Prometi partilhar convosco a nossa experiência, prometi ser ponte, porque há sempre alguém que passa pelo mesmo e é tão difícil fazê-lo sozinho. Ressalvo, contudo, que a nossa experiência é com o Grupo FLAP (Fendas Lábio-Alvéolo-Palatinas), a equipa incrível do hospital Lusíadas do Porto, pelo que há timings que serão diferentes do de outras equipas. Mas aqui vai: a queiloplastia é a primeira cirurgia de quem nasce com uma fenda lábio-palatina, é a cirurgia que corrige a fenda labial (ou fendas) e é feita entre os 3 meses e os 6 meses de idade. A Matilde fez aos 3 meses. É uma cirurgia minuciosa, com anestesia geral. A da Matilde durou entre 2h30 / 3h00, mas penso que cada caso é um caso. É feita uma consulta multidisciplinar com a equipa, um mês antes da cirurgia, para avaliação e preparação, os pais são informados do que vai acontecer e dos cuidados a ter no pós operatório. Os cuidados foram-nos passados várias vezes e por vários profissionais, é normal termos medo de não estar à altura, mas a equipa passa-nos muita segurança para além de que estão sempre disponíveis para todas as dúvidas. TODAS. 

Os dias que antecedem a cirurgia são dolorosos, por esta altura amamos esta criança tal e qual como nasceu, amamos mais do que tudo este sorriso rasgado que um dia, num longínquo diagnóstico, tanto nos assustou. E a despedida dói. A ansiedade de não saber como vai correr, corrói. E a ida para o hospital no dia da cirurgia é dilacerante. Felizmente é uma equipa de gente humana que sabe que cuida não apenas a criança, mas os pais também. Somos ouvidos e acolhidos. Desde a equipa de auxiliares à equipa de enfermagem e cirurgia. Não fixámos todos os nomes, porque estávamos nervosos, mas precisamos de agradecer ao enfermeiro André, que nos recebeu à entrada do bloco operatório e que cuidou a nossa menina no recobro. À enfermeira Carla, cujo sorriso e toque me acalmaram o peito. À médica anestesista Amélia Ferreira que me explicou todo o processo na noite anterior e antes da cirurgia. E ao Dr. António Bessa-Monteiro, pela atenção e disponibilidade desde o primeiro momento, mas sobretudo pelo amor e presença. 

Quando nos espantamos com a bondade no mundo, é porque algo está muito errado nos dias em que vivemos. E por isso sinto muita gratidão por viver no mesmo tempo que estas pessoas, e por ter a sorte de os ter a cuidar da minha filha.

A cirurgia correu muito bem, e entrar no recobro para encontrar a Matilde foi muito emotivo. Chorei muito, vê-la tão pequenina, tão frágil, a fazer bolhinhas de saliva com sangue. Quis ser eu no lugar dela, quis ser eu a passar por aquilo e que ela só estivesse bem. Doeu muito. E doeu mais não encontrar o sorriso que tão bem conhecíamos. De repente tínhamos nos braços uma bébé que não sorria... e é normal, porque saiu da cirurgia, porque não tem sensibilidade, porque leva tempo... mas é um impacto muito grande, nestas primeiras vezes. 

A primeira noite foi dura, o dia seguinte também, mas o internamento também tem enfermeiras humanas que nos acolhem as dores. As da cirurgia e as da alma. Um agradecimento especial à enfermeira Tânia que nos recebeu nesta primeira tarde pós cirurgia e a tornou mais leve. Ao auxiliar Diogo Monteiro pela simpatia e preocupação para connosco e para com a Matilde, todos os dias.

Regressar a casa foi mais fácil, apesar das dúvidas, sentíamo-nos mais preparados. Não estávamos era preparados para voltar para a consulta de pós cirurgia, na segunda-feira, e acabar internados no domingo anterior com uma bronquiolite da Matilde. Isto, vindos de uma cirurgia, foi causa de pânico nos corações destes pais de primeira viagem. Felizmente estávamos num apartamento junto aos Lusíadas e corremos para as urgências. Ficámos internados. Podia só escrever sobre a cirurgia e a sua recuperação, mas não escrevo sobre esta bronquiolite à toa. As palavras fazem ninho dentro de nós e as histórias mudam-nos e, por isso, preciso de vos falar sobre a enfermeira Mariana.

Na véspera da cirurgia da Matilde demo-nos conta de que não tínhamos o peso dela actualizado, corremos as farmácias todas da Boavista e nenhuma tinha balança para pesar a bébé. Já em desespero, pedi ao André que ligasse para os Lusíadas e perguntasse se era possível lá ir pesar a bébé, uma vez que tínhamos a cirurgia no dia seguinte. Disseram-nos para passar, subir à pediatria a explicar a situação, e assim o fizemos. Fomos recebidos pela enf. Mariana, sorridente e atenciosa, que se prontificou logo a pesar a bébé e ainda nos deu guarida para o biberão do fim de dia. No final da semana, ligou-nos para saber como tinha corrido a cirurgia, como estava a correr o pós operatório e se tínhamos alguma dúvida, fez-nos perguntas e disponibilizou-se para responder a todas as nossas questões, mesmo as mais tontas. No fim, disse-nos para estarmos atentos aos sinais de dificuldade respiratória e explicou-nos como detectar.

No domingo, quando chegámos ao Porto, foram esses os sinais que detectei na Matilde, e detectei-os porque a enf. Mariana havia falado neles, de outra forma podia nem ter dado conta. Já nas urgências, enquanto aguardávamos ser chamados para as análises, encontrámos a enf. Mariana. Explicámos tudo, referi que se não fosse ela dificilmente teríamos percebido o que estava errado. Não consigo explicar o alívio que ambos sentimos, no meio daquele turbilhão, ao encontrá-la. Ficámos internados, nessa noite e nas que se seguiram, mas a enf. Mariana estava a fazer o turno da noite justamente quando lá fomos parar. E se isto não foi obra de algo maior, não sei. "Awen", entoava eu internamente enquanto carregava a Matilde nos braços, na sala de espera. 

A enf. Mariana estava a trabalhar, e podia ser só isso, mas ela coloca-se inteiramente no trabalho, amor, atenção, disponibilidade e humanidade fazem dela esta pessoa especial que tocou as nossas vidas e, tenho a certeza, tocará a de tantos pais e crianças que por lá passam. A Matilde respondia de forma diferente ao seu tratamento, muitas vezes continuava a dormir mesmo a fazer os puffs e a tomar o corticóide amargo. E sorria-lhe.

Fomos muito bem tratados pelas enfermeiras do internamento pediátrico, pelos auxiliares, e pelos pediatras que nos acompanharam. Mas a enf. Mariana ficou com um pedaço do nosso coração na algibeira. Quando era mais nova ouvia a minha tia dizer "quem meus filhos beija, minha boca adoça", e agora entendo. 

A Matilde está bem e a recuperar com força, da cirurgia e da bronquiolite. Os pais estão bem porque nos cuidaram o coração. Que esta história vos inspire a colocar um bocadinho mais de amor e atenção no trato com o outro, sempre, mas especialmente nesta época tão sensível que atravessamos agora.

Obrigada, Grupo FLAP.
Obrigada, enf. Mariana.
Obrigada, Hospital Lusíadas do Porto.

Regressar devagar ao teu sorriso.

 
Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa.
— Manuel António Pina

Estamos a quatro dias da tua primeira cirurgia, e eu não poderia imaginar o aperto que carregaríamos ao peito... mesmo acreditando na equipa de anjos que escolhemos ter connosco, na sincronicidade dos nossos passos e das pessoas que nos acompanham. Aperto-te junto ao peito e experiencio esta nova emoção que é estar tão feliz e cheia de amor e ao mesmo tempo tão ansiosa e angustiada. Sei que o sentes, ontem choraste como há muito não choravas. Era o choro dos dias difíceis. Não era fome nem fralda, não era sono, era um choro inconsolável que está para lá de nós. Abracei-te com força junto ao coração enquanto esperneavas de rosto vermelho e coberto de lágrimas. Procurava acalmar-te enquanto me acalmava também. Queria fugir, pousar-te na cama e fugir dali, deixar de sentir o teu choro como uma faca que me trespassa o peito. É tão difícil sair deste lugar de culpa, deixar de ser a menina magoada e ser a mãe que acolhe. A maternidade é uma escola.

Choras porque nos sentes o turbilhão dentro - e eu que pensava que isso só acontecia quando te fui casa. Não sabia que "ser mãe" também era "tornar-se lugar".

Preparamo-nos os três para a tua cirurgia, de emoções à flor da pele. Nós preocupados contigo agarrando-nos à tua força, e tu, tão pequenina, a sentir tudo isto. "Está tudo bem", sussurramos-te ao ouvido. Falamos, também, para nós. Tu não te vais lembrar como era sorrir com o teu sorriso, nós vamos. Passámos as últimas semanas resguardados do mundo, a despedirmo-nos dele. Do teu sorriso rasgado e bonito que nos espera a cada manhã, neste mundo que busca nada menos que a perfeição. Sortudos pais, nós, que a encontrámos no teu sorriso imperfeito.

Aprenderemos a amar o sorriso que será o teu, que sorrirá com os teus olhos o resto da vida, mas regressarei sempre, devagar, ao teu sorriso... como quem regressa a casa.

Fizeste-me presente, filha.

Nasceste e, contigo, despi-me de mim e renasci esta Inês cheia de defeitos, mais humana e imperfeita.

Confrontei-me com isto enquanto te dava o biberão. Com a tua mãozinha pequenina agarravas um dos meus dedos com força e olhavas-me nos olhos. Fixámos o olhar uma na outra e, por momentos - daqueles que parecem ficar suspensos no tempo - , vi passar várias versões de mim mesma. Uma a uma, iam e vinham. Dei por mim a chorar: despedia-me. Agarrei-me a cada uma delas, cada um dos meus passados, teimosamente guardados, embrulhados em papel-seda perfumado. Gestos, palavras, papel amarelado e fotografias gastas de tanto as olhar. Memórias presas pela ponta dos dedos, que se recusam a largar. Estou pronta, penso. Estou pronta para me desp(ed)ir delas.

Os teus olhos grandes fixos nos meus, tão intensos e presentes. E eu nua, inteiramente Eu, neles.

Lembro-me de me olhar ao espelho na manhã seguinte ao teu nascimento, naquela casa de banho cinzenta e de luz branca e forte. O espelho, enorme, devolvia-me a imagem de uma Inês que não reconheci: a bata azul do hospital, o cabelo desgrenhado e apanhado em cima, as cuecas de rede e o penso enorme. A barriga onde moraste em mim por 9 meses. Nunca me havia visto tão bonita, tão verdadeira. Segurei a barriga com as minhas mãos e agradeci-lhe. Obrigada barriga, obrigada útero, obrigada corpo. Desculpa barriga, desculpa útero, desculpa corpo. Amar-mo-nos é um caminho tortuoso. Olhar-mo-nos com verdade e amor, um caminho igual.

Desde que chegaste que os dias são de presença. De presente. “Que tontice”, irás pensar, “não são todos os dias presente antes de se fazerem passado?” são, mas a tua mãe tinha um caso sério com o passado e sonhava o futuro para ontem, até chegares… Quando te tenho ao colo, como agora, estou aqui, estou inteiramente aqui. Escuto com mais nitidez os sons ao redor, tão longe comparados com o perto do teu respirar. Guardo cada uma das tuas expressões, porque descobri que a maternidade também é este eterno despedir de partes de um bébé que cresce sob o nosso olhar. Nasceste há 27 dias e eu já me despedi da bébé que nasceu comigo naquele dia, dos babygrows que teimam em encolher todas as semanas, e das muitas que fui até te conhecer.

Olho-me ao espelho da casa de banho cá de casa, por onde entra cedo a luz do sol, o som do vento, e encontro de novo a Inês daquele dia: cabelo desgrenhado e apanhado em cima, pijama que fica no corpo o dia todo, que comeu umas torradas e deixa o almoço para quando der. Esta Inês que cheira a ti, cheia de defeitos, mais humana, imperfeita… e tão assustadoramente Eu.

Renasci contigo, filha, naquele dia de Agosto em que duas enfermeiras-parteiras e a tua madrinha nos guardaram o parto e o tempo. Verdadeiras Guardiãs do Sagrado sobre as quais serei capaz de escrever um dia.

Maternar é este ser e estar presente, mas também esta aprendizagem do adeus, não é?

A importância de se ser ponte.

Hesitei muito antes de escrever este texto, aqui, mas também ainda não havia sido capaz de o fazer no recolhimento do meu diário. Creio que há coisas que procuramos não escrever para que não se tornem reais.

Isto é, contudo, um contrasenso, para quem entende o mundo com a ponta dos dedos.

Mas aqui estou, sobretudo porque esta manhã escutei um episódio do podcast “Páginas com Graça” e, enquanto limpava as lágrimas, pensava na importância que têm as histórias e em como criam pontes no vazio fazendo com que, sem que conheçamos aquela pessoa, nos sintamos menos sozinhos, mais compreendidos e, por estranho que pareça, como se alguém nos tivesse escutado na voz daquele estranho que um dia abriu o coração para o microfone. A história do outro é muitas vezes a nossa, é importante partilhar, é importante dar voz à nossa história. E aqui está, a que se tem tecido por aqui:

No dia 3 de Abril, às 22 semanas de gestação, a nossa bébé foi diagnosticada com uma malformação congénita de que nunca ouviramos falar. A Matilde iria nascer com uma fenda lábiopalatina bilateral, comummente apelidada de “lábio leporino” (termo ainda usado mas considerado pejorativo nos dias de hoje). O diagnóstico foi duro, porque o desconhecido assusta, mas a dor foi maior porque não houve um acolhimento humano por parte dos profissionais de saúde com quem esbarrámos nas semanas seguintes. Chorámos muito, sim, mas rapidamente limpámos as lágrimas e procurámos ajuda.

Há duas coisas, a nosso ver, que precisam ser feitas perante um diagnóstico destes:
1) Aceitar: factos são factos, é visível na ecografia, está a acontecer, não há nada que se possa fazer para mudar. Aceitar e procurar ajuda para melhor corresponder a esta menina bonita que aí vem é o passo seguinte.
2) Fazer o luto. Não é por aceitarmos que deixa de doer, às 22 semanas de gestação já há expectativas, há sonhos sonhados, há um bébé “perfeito” (seja lá o que isso for!) que imaginámos ter nos braços. Esse bébé, frequentemente, não existe, mas a nossa bébé vem diferente. E é importante largar estas expectativas, é importante largar esta bagagem que pesa, a partir daqui vivemos um dia de cada vez e vivemo-lo com leveza, porque ela precisa de nós inteiros!

E assim foi. Não vou entrar em pormenores, mas preciso de partilhar que vivemos 5 semanas duras pós diagnóstico, com uma médica que nos coagiu a abortar e praticamente me chamou de inconsciente. Existia um risco real de, associada à fenda bilateral do lábio e do palato, a bébé nascer com alguma alteração cromossómica, sendo as mais comuns: uma trissomia 21, 13 ou 18. Não estávamos a ser inconscientes, após uma consulta de genética no Hospital Dona Estefânia, com a primeira médica, desde o diagnóstico, que nos tratou com humanidade, estávamos até bem cientes e conscientes do risco. Contudo, o rastreio que fizera no início da gravidez apontara baixo risco para trissomias, e as trissomias 13 e 18 pareciam ser totalmente incompatíveis com todas as ecografias efectuadas até então. A bébé estava bem, os valores estavam todos certinhos para o tempo de gestação, e mostrava boa vitalidade.

Havia uma pergunta dura a fazer, aliás, duas: valeria a pena por em risco a nossa bébé por um diagnóstico? E, associada a esta, em que circunstâncias poria um aborto em cima da mesa?

Não sou contra o aborto mas, como em tudo, há razões e razões. E, para nós, qualquer alteração cromossómica - desde que compatível com a vida -, ainda que acarrete desafios, não é razão para aborto. A resposta foi simples, perante um diagnóstico que apenas aponta para uma malformação física, que, de resto, aponta para uma vida perfeitamente normal, a nossa resposta foi não ao teste invasiso.

Contámos aos nossos pais e aos familiares próximos, e ainda que sentíssemos colo sentíamo-nos sós. Não quisémos contar aos nossos amigos, uma parte de mim sentia culpa (“e se fui eu?” pensava, noite dentro, entre sonos mal dormidos. A culpa fazia-me querer esconder. “e se não a aceitarem? e se não virem nela o que nós já sentimos?”, havia muita coisa em turbilhão dentro de mim, dentro de nós). Procurei encontrar outros pais de crianças que tivessem nascido com a mesma condição, precisava de sentir que não estávamos sozinhos, que algures, perto, havia alguém que já havia sentido o mesmo que nós. Foi surpreendente a quantidade de páginas e de informação divulgada que encontrei no Brasil, contudo, em Portugal, para além das informações médicas, poucas ou nenhumas partilhas pessoais. Foi de coração no avesso da pele que contactei uma mãe, no Brasil, cujo filho nascera com uma fenda lábiopalatina unilateral, e cujo projecto “A Luz do Teu Sorriso” se centra na consciencialização desta condição. A Vanessa respondeu prontamente à minha mensagem e, no dia seguinte, encontrámo-nos virtualmente. Esta foi a primeira ponte que tecemos e, a partir desta, a partilha da Vanessa sobre uma mãe portuguesa que havia tido a filha, com a mesma condição, no Rio de Janeiro, e que fazia parte de um grupo de mães (“As Fissuradas”) que falavam sobre a causa e se apoiavam mutuamente. Foi simples assim, no fim da conversa tinha outra ponte. No meu whatsapp: o link para um episódio de podcast e o contacto directo da Pipa, a mãe da Maria Rita. O podcast, já imaginam, era o “Páginas com Graça”.

Não sei explicar o que senti, chorei o episódio inteiro, revi-me muito na história da Pipa, pré Maria Rita, pré e pós diagnóstico. Não estávamos mais sozinhos, senti. Entrámos em contacto e foram imediatos o colo e o abraço caloroso.

A nossa história principiava a mudar, do diagnóstico ao histerismo das 500 mil mutações cromossómicas que podiam recair sobre a nossa filha, chegámos a mar calmo. Falo-vos disto com o coração sereno, enquanto acaricio a barriga. Não foi sempre assim, chorámos muito, duvidámos muito, perdemos a fé e ruímos. Felizmente tivemos apoio dos nossos, recebemos mensagens que - tantas vezes, não sendo directamente para nós - nos foram reconstruindo, que nos foram ajudando a encontrar a fé e, sobretudo, o amor. Refugiámo-nos um no outro, falámos com ela, explicámos-lhe tudo o que sentíramos e o que decidíramos. Ela continua a dançar cá dentro. E embora tenha escondido o rosto, com as mãozinhas, em todas as ecografias pós diagnóstico, agora já aparece a xuxar no dedo, calma.

Esta miúda ainda não nasceu e já nos ensinou tanto sobre a vida, sobre o amor. Já colocou no nosso caminho anjos que vieram mudar a nossa percepção da vida. Já estamos bem encaminhados, a Matilde será seguida no Porto pelo Dr. Bessa Monteiro, este anjo que nos chegou pelas mãos da Pipa, e mais partilharei quando chegar a altura.

Se este texto servir para alguma coisa que não, apenas, eu dar sentido aos dias, que sirva de ponte a todos os pais ou mães que poderão estar a passar por isto neste exacto momento. Uma fenda lábiopalatina é um dos diagnósticos mais comuns, 1/600 crianças nasce em Portugal com esta malformação. Não há causas que se possam apontar, não é culpa tua, mãe que me lês. É preciso trazer luz a este tema, porque só na luz há amor. E se há amor, há sempre, sempre, caminho.