Noutro tempo pousavas a tua mão

Noutro tempo pousavas a tua mão
No meu braço disponível
E sentia-te a vida pela ponta dos dedos
O teu coração solitário a palpitar na carne
Pelo sorriso...

Noutro tempo olhava a janela não como um buraco neutro
De onde é inútil sair ou enganar o olhar
E perdia-me nos teus cabelos a bailar a bailar
Essa magnificente vertigem que eram teus braços ansiosos

O dia ajuntava as partes de ti
E eu colecionava-te aos poucos
Descobrindo os teus recantos proibidos
Aonde beber de ti

Éramos um silêncio embriagado de gestos
Linguagem de um universo doméstico
Que não terminava de acontecer

Só os pássaros ou as estrelas nos igualavam...

Fugia então de ti por essas tardes fora
Correndo entre as urzes e as árvores silentes
Ouvindo-te os passos como um sussurro ardente
De teu corpo vadio buscando a minha pele

Era a ardência jovem dum suspiro
Uma febril meditação sobre o abismo

Perdia-me no tempo tentando ganhar a vida
E via teus cabelos crescerem dia a dia

A tua pele envelhecendo em rugas pequeninas
O final macabro que termina a festa

Era tudo tão dolorosamente lento
Vinte anos depois quase vinte séculos
Após vinte dias...

Tu eras já ninguém caindo pela rua
E eu mendigo roto esperando ternura!

 

João Maria do Ó Pacheco
Poemas I,
Editora Labirinto

 

 

Fotografia: Marco Gil