Da nossa Aldeia.

No sábado celebrámos a chegada da Matilde, que é como quem diz, reunimo-nos para uma pré-matildice nesta coisa moderna a que damos o nome de Baby Shower. Foi tudo caseiro, os meus pais cederam-nos o colo, a casa e o jardim, e nós convidámos uma mão cheia de amigos e família para celebrarem connosco.

A nossa filha ainda não nasceu e estes pais comovem-se: com a beleza e com o amor desta aldeia que nos calhou, que lhe calhou.

Eu que não acreditava, que não entendia aquele provérbio africano que dizia É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, que achei que neste mundo em que vivemos, onde nos fechamos em nós próprios e no próprio dia-a-dia, onde oferecemos ajuda mas temos tanta, tanta, dificuldade em pedi-la de volta, onde a diferença é excluída e o difícil é visto como descartável ou antes (e esta é gira): “tóxico”, não havia espaço para uma rede desta dimensão, de amor e cuidado, de braços estendidos que nos oferecem consolo e colo, mas também nos dão a força e a certeza de que assim, só assim, tudo é possível.

Que bela lição de humildade e amor. Esta mocita ainda mal cá chegou e já nos ensina tanto sobre a vida!

Era quase 1h da manhã quando nos deitámos, exaustos mas de coração a transbordar, com uma Matilde a dançar na minha barriga. Quis guardar o que pude deste dia tão lindo, dentro de mim, estar com toda a gente e, ainda assim, sentir que não consegui estar com ninguém. As palavras entamarelaram-se no coração, senti apenas vontade de chorar - mas das lágrimas boas, das que nos aliviam o peito e abrem espaço a mais amor.

Este é o texto possível, a nossa forma humilde de agradecer aos nossos a presença e o coração inteiro. O cuidado e o colo, mas sobretudo a presença.

As fotos dos amigos, ficam privadas, mas deixo as fotos do bolo delicioso feito pela minha mãe, da representação mais bonita desta família em (re)nascimento - criada pelas mãos da minha bruxinha favorita: Joana Nogueira -, e as fotos com os avós que principiam a nascer.

Obrigada é pouco, querida Aldeia.

Restaurar a fé.

Não sou uma pessoa religiosa. Fui criada no meio de uma família materna de testemunhas de Jeová e de uma família paterna católica, não praticante. Vivemos Natais diferentes da maioria dos nossos amigos, assinalávamos a data mas não tínhamos presépio, não tínhamos árvore de natal ou decorações alusivas. Sempre comemorámos aniversários, e habituei-me desde cedo a não ter por perto os meus avós maternos nessas datas. No 5º ano, a minha mãe inscreveu-me nos Salesianos de Manique, escola católica. Cresci, assim, no meio de duas religiões… e não me apeguei a nenhuma. Havia muita coisa que não me fazia sentido, nem de um lado, nem do outro, e decidi que não acreditava em Deus.

A morte do meu Avô Materno, em 2004, e a sua recusa em aceitar uma transfusão de sangue que o poderia (talvez) salvar, fizeram-me amaldiçoar esse Deus em que ele tanto acreditava.

Fruto da perda, não sei, escolhi acreditar que quem parte fica connosco, ainda que num plano diferente. Que ele estaria sempre à distância de uma conversa no silêncio. E agarrei-me a isso, a tratar os meus mortos por tu, como quem nunca parte. A pedir-lhes auxílio sempre que a vida doía um pouco mais.

Quando descobri o Druidismo, pareceu-me que podia adoptar esta filosofia de vida e fazer dela a minha religião. Não creio num Deus, creio no amor, creio na Natureza, na alma que viaja entre mundos. Acredito que quando fechamos os olhos aqui, algures, de um outro lado, abriremos outros olhos. E acredito que a Vida é preciosa de mais para nos perdermos neste mundo pequenino que habitamos. Não sei se é real, mas não preciso que o seja, acreditar traz-me a paz e o conforto que necessito.

A nossa vida mudou no dia em que engravidámos. Receber esta criança foi mais do que uma experiência física, mais do que simples biologia, foi sentir que esta alma chegava a nós no momento certo e que nos estava destinada. Não está a ser uma gravidez tranquila, está a ser uma gravidez amada, desejada, sonhada, trouxe desafios que não imaginávamos e que, a seu tempo, deles falarei. As 3 últimas semanas mostraram-nos a força que carregamos dentro, mas também me fizeram duvidar de todas as minhas crenças, do Deus que inventei para mim, da minha intuição, da minha sanidade e poder de decisão. Não foi a minha filha que o fez, foram terceiros. Eu deixei que me fosse roubada a fé, no amor, em mim, na nossa família.

E, quando eu deixei de acreditar, a nossa família criou uma barreira forte para chorarmos juntos, uma rede gigante que nos suporta aos três nestas acrobacias emocionais, e os amigos, sem saberem, contavam-nos histórias de esperança e de crença… aos poucos, dei por mim a orar. Não sei a quem rezo, mas agradeço todos os dias a filha que carrego no útero, a família que nos calhou, os amigos que nos lêem a alma. E peço que lhes chegue de volta todo o amor e força que nos entregam diariamente.

Não lhe chamo Jeová, nem Jesus Cristo, chamo-lhe Amor… é isso que nos dá sentido à vida. O Futuro, não o leio, mas acredito hoje que o amor nos abre caminhos e que “enquanto houver estrada para andar a gente vai continuar.”

 
 

A minha filha.

Escrever sobre a minha filha é escrever sobre um mundo encantado que principia a existir. Um livro em branco à espera das suas cores, purpurinas, melodias.

Escrever sobre a minha filha é tentar resgatar de mim as palavras mais bonitas e ficar sempre aquém. Uma menina-poema que, como qualquer bom poema, nos agarrou no coração e o tornou do avesso.

Habita-me o corpo e toda a existência, e já me tornou - em igual medida - na pessoa mais forte e mais frágil que habita os dias.

Auguros.

Ontem deitei-me tarde, não tinha sono, deitei-me no chão do sótão com um livro e fiquei a olhar o tecto. Esperava a chuva que haviam prometido. Há muito tempo que não me sentia assim, nesta ansiedade de quem tem visita de estudo amanhã, de quem vai quebrar a rotina para ver coisas incríveis. Eu queria ver a chuva. Quando os olhos não aguentaram mais, adormeci.

Hoje acordei com o som da chuva nos telhados... saltei da cama e, entre os afazeres da manhã, preparei um chá quentinho - não me lembro da última vez que preparei um chá, os dias frios já estão tão longe. Deixei-me ficar assim, junto à janela, com uma chávena de chá nas mãos, a ver a chuva a cair e o dia a acontecer alheado a ela.

Lá em baixo, o rio, que já mal se avistava da minha janela, corre apressado. Espero que não vá atrasado e que volte a tempo do jantar. Espero que fique por cá mais uns tempos, tenho saudades de o ver correr com vagar.

Quanto à chuva, que fique o tempo necessário para que amanheçamos todos mais felizes. Que traga auguro de abundância e bons presságios.