Regressar devagar ao teu sorriso.

 
Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa.
— Manuel António Pina

Estamos a quatro dias da tua primeira cirurgia, e eu não poderia imaginar o aperto que carregaríamos ao peito... mesmo acreditando na equipa de anjos que escolhemos ter connosco, na sincronicidade dos nossos passos e das pessoas que nos acompanham. Aperto-te junto ao peito e experiencio esta nova emoção que é estar tão feliz e cheia de amor e ao mesmo tempo tão ansiosa e angustiada. Sei que o sentes, ontem choraste como há muito não choravas. Era o choro dos dias difíceis. Não era fome nem fralda, não era sono, era um choro inconsolável que está para lá de nós. Abracei-te com força junto ao coração enquanto esperneavas de rosto vermelho e coberto de lágrimas. Procurava acalmar-te enquanto me acalmava também. Queria fugir, pousar-te na cama e fugir dali, deixar de sentir o teu choro como uma faca que me trespassa o peito. É tão difícil sair deste lugar de culpa, deixar de ser a menina magoada e ser a mãe que acolhe. A maternidade é uma escola.

Choras porque nos sentes o turbilhão dentro - e eu que pensava que isso só acontecia quando te fui casa. Não sabia que "ser mãe" também era "tornar-se lugar".

Preparamo-nos os três para a tua cirurgia, de emoções à flor da pele. Nós preocupados contigo agarrando-nos à tua força, e tu, tão pequenina, a sentir tudo isto. "Está tudo bem", sussurramos-te ao ouvido. Falamos, também, para nós. Tu não te vais lembrar como era sorrir com o teu sorriso, nós vamos. Passámos as últimas semanas resguardados do mundo, a despedirmo-nos dele. Do teu sorriso rasgado e bonito que nos espera a cada manhã, neste mundo que busca nada menos que a perfeição. Sortudos pais, nós, que a encontrámos no teu sorriso imperfeito.

Aprenderemos a amar o sorriso que será o teu, que sorrirá com os teus olhos o resto da vida, mas regressarei sempre, devagar, ao teu sorriso... como quem regressa a casa.

Fizeste-me presente, filha.

Nasceste e, contigo, despi-me de mim e renasci esta Inês cheia de defeitos, mais humana e imperfeita.

Confrontei-me com isto enquanto te dava o biberão. Com a tua mãozinha pequenina agarravas um dos meus dedos com força e olhavas-me nos olhos. Fixámos o olhar uma na outra e, por momentos - daqueles que parecem ficar suspensos no tempo - , vi passar várias versões de mim mesma. Uma a uma, iam e vinham. Dei por mim a chorar: despedia-me. Agarrei-me a cada uma delas, cada um dos meus passados, teimosamente guardados, embrulhados em papel-seda perfumado. Gestos, palavras, papel amarelado e fotografias gastas de tanto as olhar. Memórias presas pela ponta dos dedos, que se recusam a largar. Estou pronta, penso. Estou pronta para me desp(ed)ir delas.

Os teus olhos grandes fixos nos meus, tão intensos e presentes. E eu nua, inteiramente Eu, neles.

Lembro-me de me olhar ao espelho na manhã seguinte ao teu nascimento, naquela casa de banho cinzenta e de luz branca e forte. O espelho, enorme, devolvia-me a imagem de uma Inês que não reconheci: a bata azul do hospital, o cabelo desgrenhado e apanhado em cima, as cuecas de rede e o penso enorme. A barriga onde moraste em mim por 9 meses. Nunca me havia visto tão bonita, tão verdadeira. Segurei a barriga com as minhas mãos e agradeci-lhe. Obrigada barriga, obrigada útero, obrigada corpo. Desculpa barriga, desculpa útero, desculpa corpo. Amar-mo-nos é um caminho tortuoso. Olhar-mo-nos com verdade e amor, um caminho igual.

Desde que chegaste que os dias são de presença. De presente. “Que tontice”, irás pensar, “não são todos os dias presente antes de se fazerem passado?” são, mas a tua mãe tinha um caso sério com o passado e sonhava o futuro para ontem, até chegares… Quando te tenho ao colo, como agora, estou aqui, estou inteiramente aqui. Escuto com mais nitidez os sons ao redor, tão longe comparados com o perto do teu respirar. Guardo cada uma das tuas expressões, porque descobri que a maternidade também é este eterno despedir de partes de um bébé que cresce sob o nosso olhar. Nasceste há 27 dias e eu já me despedi da bébé que nasceu comigo naquele dia, dos babygrows que teimam em encolher todas as semanas, e das muitas que fui até te conhecer.

Olho-me ao espelho da casa de banho cá de casa, por onde entra cedo a luz do sol, o som do vento, e encontro de novo a Inês daquele dia: cabelo desgrenhado e apanhado em cima, pijama que fica no corpo o dia todo, que comeu umas torradas e deixa o almoço para quando der. Esta Inês que cheira a ti, cheia de defeitos, mais humana, imperfeita… e tão assustadoramente Eu.

Renasci contigo, filha, naquele dia de Agosto em que duas enfermeiras-parteiras e a tua madrinha nos guardaram o parto e o tempo. Verdadeiras Guardiãs do Sagrado sobre as quais serei capaz de escrever um dia.

Maternar é este ser e estar presente, mas também esta aprendizagem do adeus, não é?

A importância de se ser ponte.

Hesitei muito antes de escrever este texto, aqui, mas também ainda não havia sido capaz de o fazer no recolhimento do meu diário. Creio que há coisas que procuramos não escrever para que não se tornem reais.

Isto é, contudo, um contrasenso, para quem entende o mundo com a ponta dos dedos.

Mas aqui estou, sobretudo porque esta manhã escutei um episódio do podcast “Páginas com Graça” e, enquanto limpava as lágrimas, pensava na importância que têm as histórias e em como criam pontes no vazio fazendo com que, sem que conheçamos aquela pessoa, nos sintamos menos sozinhos, mais compreendidos e, por estranho que pareça, como se alguém nos tivesse escutado na voz daquele estranho que um dia abriu o coração para o microfone. A história do outro é muitas vezes a nossa, é importante partilhar, é importante dar voz à nossa história. E aqui está, a que se tem tecido por aqui:

No dia 3 de Abril, às 22 semanas de gestação, a nossa bébé foi diagnosticada com uma malformação congénita de que nunca ouviramos falar. A Matilde iria nascer com uma fenda lábiopalatina bilateral, comummente apelidada de “lábio leporino” (termo ainda usado mas considerado pejorativo nos dias de hoje). O diagnóstico foi duro, porque o desconhecido assusta, mas a dor foi maior porque não houve um acolhimento humano por parte dos profissionais de saúde com quem esbarrámos nas semanas seguintes. Chorámos muito, sim, mas rapidamente limpámos as lágrimas e procurámos ajuda.

Há duas coisas, a nosso ver, que precisam ser feitas perante um diagnóstico destes:
1) Aceitar: factos são factos, é visível na ecografia, está a acontecer, não há nada que se possa fazer para mudar. Aceitar e procurar ajuda para melhor corresponder a esta menina bonita que aí vem é o passo seguinte.
2) Fazer o luto. Não é por aceitarmos que deixa de doer, às 22 semanas de gestação já há expectativas, há sonhos sonhados, há um bébé “perfeito” (seja lá o que isso for!) que imaginámos ter nos braços. Esse bébé, frequentemente, não existe, mas a nossa bébé vem diferente. E é importante largar estas expectativas, é importante largar esta bagagem que pesa, a partir daqui vivemos um dia de cada vez e vivemo-lo com leveza, porque ela precisa de nós inteiros!

E assim foi. Não vou entrar em pormenores, mas preciso de partilhar que vivemos 5 semanas duras pós diagnóstico, com uma médica que nos coagiu a abortar e praticamente me chamou de inconsciente. Existia um risco real de, associada à fenda bilateral do lábio e do palato, a bébé nascer com alguma alteração cromossómica, sendo as mais comuns: uma trissomia 21, 13 ou 18. Não estávamos a ser inconscientes, após uma consulta de genética no Hospital Dona Estefânia, com a primeira médica, desde o diagnóstico, que nos tratou com humanidade, estávamos até bem cientes e conscientes do risco. Contudo, o rastreio que fizera no início da gravidez apontara baixo risco para trissomias, e as trissomias 13 e 18 pareciam ser totalmente incompatíveis com todas as ecografias efectuadas até então. A bébé estava bem, os valores estavam todos certinhos para o tempo de gestação, e mostrava boa vitalidade.

Havia uma pergunta dura a fazer, aliás, duas: valeria a pena por em risco a nossa bébé por um diagnóstico? E, associada a esta, em que circunstâncias poria um aborto em cima da mesa?

Não sou contra o aborto mas, como em tudo, há razões e razões. E, para nós, qualquer alteração cromossómica - desde que compatível com a vida -, ainda que acarrete desafios, não é razão para aborto. A resposta foi simples, perante um diagnóstico que apenas aponta para uma malformação física, que, de resto, aponta para uma vida perfeitamente normal, a nossa resposta foi não ao teste invasiso.

Contámos aos nossos pais e aos familiares próximos, e ainda que sentíssemos colo sentíamo-nos sós. Não quisémos contar aos nossos amigos, uma parte de mim sentia culpa (“e se fui eu?” pensava, noite dentro, entre sonos mal dormidos. A culpa fazia-me querer esconder. “e se não a aceitarem? e se não virem nela o que nós já sentimos?”, havia muita coisa em turbilhão dentro de mim, dentro de nós). Procurei encontrar outros pais de crianças que tivessem nascido com a mesma condição, precisava de sentir que não estávamos sozinhos, que algures, perto, havia alguém que já havia sentido o mesmo que nós. Foi surpreendente a quantidade de páginas e de informação divulgada que encontrei no Brasil, contudo, em Portugal, para além das informações médicas, poucas ou nenhumas partilhas pessoais. Foi de coração no avesso da pele que contactei uma mãe, no Brasil, cujo filho nascera com uma fenda lábiopalatina unilateral, e cujo projecto “A Luz do Teu Sorriso” se centra na consciencialização desta condição. A Vanessa respondeu prontamente à minha mensagem e, no dia seguinte, encontrámo-nos virtualmente. Esta foi a primeira ponte que tecemos e, a partir desta, a partilha da Vanessa sobre uma mãe portuguesa que havia tido a filha, com a mesma condição, no Rio de Janeiro, e que fazia parte de um grupo de mães (“As Fissuradas”) que falavam sobre a causa e se apoiavam mutuamente. Foi simples assim, no fim da conversa tinha outra ponte. No meu whatsapp: o link para um episódio de podcast e o contacto directo da Pipa, a mãe da Maria Rita. O podcast, já imaginam, era o “Páginas com Graça”.

Não sei explicar o que senti, chorei o episódio inteiro, revi-me muito na história da Pipa, pré Maria Rita, pré e pós diagnóstico. Não estávamos mais sozinhos, senti. Entrámos em contacto e foram imediatos o colo e o abraço caloroso.

A nossa história principiava a mudar, do diagnóstico ao histerismo das 500 mil mutações cromossómicas que podiam recair sobre a nossa filha, chegámos a mar calmo. Falo-vos disto com o coração sereno, enquanto acaricio a barriga. Não foi sempre assim, chorámos muito, duvidámos muito, perdemos a fé e ruímos. Felizmente tivemos apoio dos nossos, recebemos mensagens que - tantas vezes, não sendo directamente para nós - nos foram reconstruindo, que nos foram ajudando a encontrar a fé e, sobretudo, o amor. Refugiámo-nos um no outro, falámos com ela, explicámos-lhe tudo o que sentíramos e o que decidíramos. Ela continua a dançar cá dentro. E embora tenha escondido o rosto, com as mãozinhas, em todas as ecografias pós diagnóstico, agora já aparece a xuxar no dedo, calma.

Esta miúda ainda não nasceu e já nos ensinou tanto sobre a vida, sobre o amor. Já colocou no nosso caminho anjos que vieram mudar a nossa percepção da vida. Já estamos bem encaminhados, a Matilde será seguida no Porto pelo Dr. Bessa Monteiro, este anjo que nos chegou pelas mãos da Pipa, e mais partilharei quando chegar a altura.

Se este texto servir para alguma coisa que não, apenas, eu dar sentido aos dias, que sirva de ponte a todos os pais ou mães que poderão estar a passar por isto neste exacto momento. Uma fenda lábiopalatina é um dos diagnósticos mais comuns, 1/600 crianças nasce em Portugal com esta malformação. Não há causas que se possam apontar, não é culpa tua, mãe que me lês. É preciso trazer luz a este tema, porque só na luz há amor. E se há amor, há sempre, sempre, caminho.

 
 

Restaurar a fé.

Não sou uma pessoa religiosa. Fui criada no meio de uma família materna de testemunhas de Jeová e de uma família paterna católica, não praticante. Vivemos Natais diferentes da maioria dos nossos amigos, assinalávamos a data mas não tínhamos presépio, não tínhamos árvore de natal ou decorações alusivas. Sempre comemorámos aniversários, e habituei-me desde cedo a não ter por perto os meus avós maternos nessas datas. No 5º ano, a minha mãe inscreveu-me nos Salesianos de Manique, escola católica. Cresci, assim, no meio de duas religiões… e não me apeguei a nenhuma. Havia muita coisa que não me fazia sentido, nem de um lado, nem do outro, e decidi que não acreditava em Deus.

A morte do meu Avô Materno, em 2004, e a sua recusa em aceitar uma transfusão de sangue que o poderia (talvez) salvar, fizeram-me amaldiçoar esse Deus em que ele tanto acreditava.

Fruto da perda, não sei, escolhi acreditar que quem parte fica connosco, ainda que num plano diferente. Que ele estaria sempre à distância de uma conversa no silêncio. E agarrei-me a isso, a tratar os meus mortos por tu, como quem nunca parte. A pedir-lhes auxílio sempre que a vida doía um pouco mais.

Quando descobri o Druidismo, pareceu-me que podia adoptar esta filosofia de vida e fazer dela a minha religião. Não creio num Deus, creio no amor, creio na Natureza, na alma que viaja entre mundos. Acredito que quando fechamos os olhos aqui, algures, de um outro lado, abriremos outros olhos. E acredito que a Vida é preciosa de mais para nos perdermos neste mundo pequenino que habitamos. Não sei se é real, mas não preciso que o seja, acreditar traz-me a paz e o conforto que necessito.

A nossa vida mudou no dia em que engravidámos. Receber esta criança foi mais do que uma experiência física, mais do que simples biologia, foi sentir que esta alma chegava a nós no momento certo e que nos estava destinada. Não está a ser uma gravidez tranquila, está a ser uma gravidez amada, desejada, sonhada, trouxe desafios que não imaginávamos e que, a seu tempo, deles falarei. As 3 últimas semanas mostraram-nos a força que carregamos dentro, mas também me fizeram duvidar de todas as minhas crenças, do Deus que inventei para mim, da minha intuição, da minha sanidade e poder de decisão. Não foi a minha filha que o fez, foram terceiros. Eu deixei que me fosse roubada a fé, no amor, em mim, na nossa família.

E, quando eu deixei de acreditar, a nossa família criou uma barreira forte para chorarmos juntos, uma rede gigante que nos suporta aos três nestas acrobacias emocionais, e os amigos, sem saberem, contavam-nos histórias de esperança e de crença… aos poucos, dei por mim a orar. Não sei a quem rezo, mas agradeço todos os dias a filha que carrego no útero, a família que nos calhou, os amigos que nos lêem a alma. E peço que lhes chegue de volta todo o amor e força que nos entregam diariamente.

Não lhe chamo Jeová, nem Jesus Cristo, chamo-lhe Amor… é isso que nos dá sentido à vida. O Futuro, não o leio, mas acredito hoje que o amor nos abre caminhos e que “enquanto houver estrada para andar a gente vai continuar.”