Experiência

Como suplemento de um filme a sério,
onde os actores fizeram o que puderam
para me emocionar e até fazer-me rir,
foi projectada uma experiência interessante
com uma cabeça.

A cabeça,
ainda há pouco pertencente a - 
surgia agora decepada,
cada um podia ver que não tinha tronco.
Da nuca pendiam tubos do aparelho
graças ao qual o sangue continuava a circular.
A cabeça
sentia-se bem.

Sem sinal de dor ou pasmo, simplesmente,
seguia com o olhar uma lanterna a mover-se.
Levantava as orelhas ao som de uma sineta.
Com o nariz molhado sabia distinguir
o cheiro do toucinho do inodoro não-ser,
e, lambendo-se com nítido deleite,
segregava saliva honrando a fisiologia.

Esta cabeça canina e fiel,
esta cabeça canina e honesta,
franzia o focinho e lhe faziam festas,
na boa fé de ser ainda uma parte de um todo
que se encolhe quando lhe afagam o dorso,
e dá à cauda.

Pensei na felicidade e senti medo. 
Porque se a questão da vida fosse essa,
a cabeça
era feliz.

 

Wisława Szymborska
Paisagem com Grão de Areia
Relógio D'Água
 

Um número elevado

Quatro biliões de pessoas nesta terra,
e a minha imaginação é como sempre foi.
Não se dá bem com números elevados,
É sempre ainda um pormenor que a comove.
Como luz de lanterna, esvoaça no escuro,
iluminando apenas os rostos mais à mão,
enquanto os outros vão seguindo às cegas,
na pena incontinente, o impensar.
Nem o próprio Dante, porém, o impediria.
Quanto mais quando se o não é.
Nem que todas as musas me acudissem.

Non omnis moriar - mágua permatura.
Será que todavia vivo inteira e isto basta?
Nunca bastou e agora muito menos.
É rejeitando que escolho, não há outra maneira,
mas é mais numeroso o que rejeito,
mais denso, mais obsessivo do que nunca.
Pelo preço de perdas incontáveis - um minúsculo poema, um suspiro. 
Ao retumbante apelo respondo sussurrando.
Quanto em mim silêncio não direi.
Rato em sopé de maternal montanha.
A vida dura três marcas de garras na areia. 

Não são sequer, como deviam, humanos, os meus sonhos.
Há neles mais solidão que multidões e gritos.
Aparece, às vezes, por momentos, alguém há muito morto.
É uma simples mão que abre a porta.
As respostas de um eco cobrem a casa vazia.
Eu precipito-me correndo do limiar a uma planura
de silêncio, como sem dono, anacrónica já.

Ignoro donde me vem este espaço ainda em mim.

 

 

Wisława Szymborska,
Paisagem com Grão de Areia
Relógio D'Águua