dos "isolados".

'Quanto a mim, em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abrimos, nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir, apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os «isolados» que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.'
 

Paris, 21 Janeiro 1913

Cartas a Fernando Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro

4 de maio

Hoje, um homem aproximou-se de mim. Vestia fato e usava gravata, mas eu reconheci-o de imediato.

Era um homem do Instituto. Estava disfarçado de pessoa normal.

Perguntou-me as horas e eu disse: Tenho dois trovões dentro dum envelope dos correios.
O da esquerda é de madeira e o do meio é fêmea.
É assim que nascem as cartas.

Ele, surpreendido com a minha resposta,
foi-se embora e não me internou.

 

Mas, por via das dúvidas, fui para casa com os sapatos calçados nas mãos.




O livro do ano
Afonso Cruz
Alfaguara

bibliotecas cheias de fantasmas.

A biblioteca protege da hostilidade exterior, filtra os ruídos do mundo, atenua o frio que reina em volta, mas confere, igualmente, uma sensação de omnipotência. Porque a biblioteca faz recuar as pobres capacidades humanas: ela é um concentrado de tempo e de espaço. Reúne nas suas prateleiras todos os estratos do passado. Ali estão os séculos que nos precederam.
«A escrita (...) grande, muito grande ao permitir-nos conversar com os mortos, com os ausentes, com aqueles que não chegaram a nascer, através de todas as distâncias do tempo e do espaço».
— jacques bonnet, «bibliotecas cheias de fantasmas». Trad. de José Mário Silva