Foi abrir as janelas à manhã I

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Decorriam os primeiros dias de Dezembro e o frio já se sentia nos ossos. Ela estava do lado de lá da porta envidraçada, da marquise, e segurava, entre as mãos, uma chávena de chá quente que sorvia lentamente. Tinha no corpo um vestido comprido, que escondia com uma camisola de malha e um casaco grosso para enganar o frio, e contemplava, de olhar vago, o fumo que subia do forno a lenha, do lado oposto do jardim. Levantara-se de madrugada, havia qualquer coisa de sagrado no acordar antes do resto do mundo para amassar o pão que chegaria, ainda quente, à mesa do pequeno-almoço. As luzes da aldeia ainda estavam acesas, mas o dia já principiara a amanhecer por entre a serra, não tardaria para o resto da casa despertar e a cozinha, agora vazia, dar lugar ao rodopio de pratos e chávenas do pequeno-almoço apressado antes do mundo arrancar.

As crianças ainda dormiam por mais uma hora, mas ele não tardaria a acordar, não era de acordar cedo, nunca fora, mas desde que as crianças nasceram que não perdia um amanhecer deles. Os olhos rasgados de sono e os cabelos desgovernados eram, há muito, a luz mais intensa da manhã. E nem as noites em claro, dos dias em que era quase visível as palavras e as frases vibrarem-lhe na pele, lhe roubavam aquele prazer.

Pousou a chávena na pedra da cozinha, estendeu a toalha de linho sobre a mesa e foi abrir as janelas à manhã. Na sala ainda se sentia a presença dele. As provas do novo livro espalhadas sobre a mesa, o computador aberto, um bolo de arroz mordido e esquecido à metade, enquanto terminava, numa palpitação, uma frase. Ela já não saberia como viver sem esta presença tão intensa, não era apenas a pessoa que ele era, mas a sua presença que ficava nos sítios que habitava mesmo depois de sair. Era como se todos os sítios fossem dele, mesmo que os houvesse pisado pela primeira vez. Era um homem de lugares, de pessoas, e isso fora uma — de tantas coisas — que a fizera apaixonar-se por ele. Era um homem do mundo e era dos outros, mas no seu coração conservava uma humildade que vinha de menino, de quem não esquece nunca, de quem sabe e sente as suas raízes. Uma vez perguntara-lhe que espécie de árvore seria e quase poderia jurar que ele diria ‘uma Oliveira’, são árvores de raízes fortes e muito compridas e os gregos associavam-nas à força e à vida. Lembrava-se de ler que, na Europa, era em Portugal que existiam os exemplares mais antigos, em Santa Iria da Azóia ainda se podia visitar uma Oliveira milenar com uma idade estimada em 2850 anos. Assentava-lhe na perfeição, mas ele respondera “uma Sobreira”. E até hoje ela não desvendara o porquê.

Antes de sair para o alpendre espreitou, uma vez mais, o quarto dos meninos, era capaz de os olhar por horas enquanto dormiam, pensou. Apertou o casaco junto ao pescoço e saiu para a manhã fria. Depois de tirar todo o pão do forno, separou dois pães num saco de pano, para a vizinha, e dispôs o resto na mesa da cozinha junto à marmelada e ao doce de tomate. Colocou o leite e a cafeteira italiana a ferver, abeirou-se da mesa e agarrou com as duas mãos a ‘rosquinha’ mais pequena da fornada. O pão, ainda quente, escaldava-lhe os dedos, mas não conseguia evitar, era das memórias mais vivas que tinha de infância, agarrar o pão quente e abri-lo com as mãos. Soprar dedos e pão. Encher a faca de manteiga e vê-la derreter para depois lhe colocar uma colher de açúcar amarelo dentro. Estava nesta gulodice quando sentiu as mãos dele rodearem-lhe a cintura:

- Bom dia, miúda!

(haviam de ter 71 e 75, e ele)

- Bom dia, miúda!

(e de seguida os lábios dele, a barba por desfazer, o abraço de todos os dias.)

Ela dá-lhe a provar um pouco do seu pão e ele puxa-a para si enquanto trinca o pedaço oferecido.

- Espera, já sei! — diz ele, mastigando o pão e correndo para a sala.

Ela espreitava-o da porta da cozinha quando, segundos depois, ouviu os primeiros acordes daquela música que os conhecia tão bem. Fechou os olhos e lembrava a primeira vez que a haviam dançado, tinha sido em Paris, na sua primeira viagem juntos. Uma das manhãs, enquanto subiam a escadaria do Sacré Coeur, ouviram ao longe a música de um realejo. Olharam um para o outro e sorriram com cumplicidade, toda a sua história havia sido feita de pequenas coincidências, como se o caminho lhes tivesse sido traçado há muito. Entrelaçaram as mãos, os corpos abraçaram-se como que por instinto, e deixaram-se embalar pela melodia. E agora estava ali, na casa que era deles, e a música soava-lhe como naquela primeira vez.

Foi por entre a névoa da memória, que sentiu uma mão apertar a sua e outra segurá-la pela cintura, não abriu os olhos. Deixou-se levar nos seus braços, como já fizera há tanto tempo atrás, pousando a cabeça sobre o seu ombro.

Estavam descalços e dançavam, a cozinha cheirava a café. A vida era simples e era bonita, era tão bonita.