‘La Tête en Friche’

Das histórias de amor mais bonitas que vi nos últimos tempos. Gérard Depardieu interpreta Germain, um biscateiro que descobre o prazer da leitura pelas mãos da doce e frágil Margueritte, cujo coração lhe arrebatou.

Juntos, protagonizam uma das mais apaixonantes viagens sobre o amor e a leitura. E de como são, de facto, a única coisa que nos salva.

Um filme para guardar junto ao peito, baseado no livro homónimo de Marie-Sabine Roger.

Gérard Depardieu e Gisèle Casadesus em ‘La Tête en Friche’

Gérard Depardieu e Gisèle Casadesus em ‘La Tête en Friche’

Os Perseguidores, Ana Teresa Pereira

Terminar um livro da Ana Teresa Pereira traz-me sempre angústia ao peito. Abraço-o junto a mim na esperança de nos fundirmos, eu e o livro, e para quem lhe conhece a obra talvez isto seja esquisito. Num universo de personagens quebradas, eu quero pertencer, eu quero ser aquela mulher naquela casa onde narcisos crescem abaixo das janelas.

E é frequente lembrar-me de passagens dos seus livros no meu dia-a-dia, porque ela escreve o que nos habita debaixo da pele, mas também a poesia do mais quotidiano dos gestos. Ler-lhe os livros é deixar-me inebriar por um perfume conhecido que nos inunda de memórias.

 
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A mosca e eu.

Deixei-me ficar na cama, uma perna para cada lado, o edredon pendurado e as almofadas espalhadas pelo quarto. É sábado e eu queria levantar-me cedo para aproveitar o sol, mas ele tinha-se escondido e eu resignei-me.

Levantei-me, ainda assim, pus doce de morango num croissant e aqueci um café com leite. Trouxe tudo para cima, recolhi uns quantos livros, um bloco de notas e o computador e espalhei tudo pela cama. Abri as janelas para escutar melhor o dia lá fora e fiquei ali especada, num vazio tão cheio de vida.

Peguei no telemóvel mais vezes do que ficaria bonito admitir, falei com pessoas, inspirei-me, pensei a minha vida, o meu futuro, os meus sonhos, tive vontade de escrever mas nada me parecia tão importante que justificasse ocupar uma folha branca, então deixei-me ficar a olhar o tecto enquanto ouvia a vida lá fora e seguia, com o olhar, uma mosca que entrara. Não sei quanto tempo passou, estávamos as duas vivas, eu a sentir-me inútil deitada na cama e ela no seu voo meio nervoso sobre mim, mas estávamos aqui. E este pensamento foi tão avassalador que tive vontade de chorar.

Tu também mereces.

Estou a aprender a cuidar de mim. Estou a aprender a olhar-me. E isto ainda implica muita disciplina e presença, porque é mais fácil voltar aos padrões antigos, à caixinha desconfortável mas conhecida.

É tão fácil esquecer-mo-nos de nós. Porque o trabalho, porque o tempo, porque os filhos, porque os gatos, porque a prima… eu sempre tive as desculpas todas e nunca me preocupei em mergulhar fundo e encontrar as causas. No fundo, era óbvio: eu não merecia cuidados.

”isto está a correr tão bem… de certeza que vai descambar”
”eu vou participar, mas é claro que não vou ganhar”
”gosto tanto dele, mas ele nunca vai olhar para mim”

Arranjar o cabelo e sentir-me envergonhada na rua, pintar as unhas e esconder as mãos nos bolsos, usar o batom vermelho mas medir bem os sítios onde, se te revês nalguma destas frases, tenho isto para te dizer:

Tu mereces ser feliz, e se tudo está a correr bem, aproveita cada segundo da viagem e vive-o.

Tu mereces ganhar, pára de te boicotar.

O que os outros sentem ou pensam em relação a ti é deles e não teu, e a maioria das vezes não corresponde àquilo que fabricaste na tua cabeça. Acredita, somos mais cruéis em relação a nós próprios do que os outros. Foca-te em ti.

Arranja o cabelo, pinta as unhas, usa o batom vermelho, é permitido sentirmo-nos bonitas (eu sei, pode ser uma revelação forte, podes parar para respirar se precisares).

Uma rotina de auto-cuidado não é fazer aquilo que vemos 30.000 mulheres fazer no Instagram e fazê-lo só porque não queremos ser a pessoa que não o faz, mas é encontrar no nosso dia-a-dia aquele momento em que estamos apenas connosco e respirar fundo, largar as merdas.

Estou numa viagem de regresso à Mulher que um dia rejeitei. Àquela que durante muito tempo não cuidei, àquela que não foi merecedora do meu mimo, do meu amor. Reencontrar a Cláudia, conhecer a Bárbara e a Dina foi muito importante neste processo. Durante muito tempo descurei ajuda, “não merecia”, mas o desespero às vezes leva-nos à rendição, e eu rendi-me ao que me estava a acontecer. E foi quando abri o peito e me permiti a aceitar o que viesse, que elas entraram de rompante na minha vida. A Cláudia desfez os nós na minha cabeça e mostrou-me que cuidar de mim é diário, e que pode ser simples. A Dina mergulhou comigo, e mostrou-me que a Mulher que eu rejeitei, ainda esperava por mim. E a Bárbara ensina-me sobre a ciclicidade do meu ser, sobre isto de ser Mulher.

São muitas as razões que nos levam a rejeitar esta Mulher, e durante muito tempo o recalquei, mas estou pronta para ser livre, para largar os pesos.

No 7º ano fui apalpada pelos rapazes da minha turma, não era a única, muitas colegas de turma o foram. E tinha vergonha, vergonha de fazer queixa. Escrevia no meu diário e rasgava as páginas, e isso fez com que nem no meu diário, espaço seguro, eu me permitisse ser eu.

Um dia, enquanto esperava pelo autocarro da escola, um homem numa carrinha de caixa aberta abriu a janela esticou dois dedos e lambeu o espaço entre eles. Eu era tão miúda que não sabia o que significava, mas senti-me suja e envergonhada.

Fui apalpada numa multidão (e sinto vergonha de o dizer porque, afinal, quantas de nós não o foram?)

Ser dread e usar roupa larga foi o melhor que a adolescência me trouxe. As curvas escondidas não davam aso a comentários desagradáveis na rua. Eu ia a pé para a escola todos os dias, e protegia-me.

Um dia, num autocarro, um homem apertou a minha perna, por baixo de toda a tralha que trazia em cima, e foi tão subtil que eu própria duvidei se estava a acontecer ou não. Demorei-me a ir para casa porque não queria que me vissem chorar, soube mais tarde que a técnica tem nome.

Há dois anos atrás, aqui em Sines, estava na praia da Costa do Norte a ler um livro quando sinto uma sombra a poucos metros à frente. Era primavera, e eu estava vestida, de collants e tudo. Levantei os olhos do livro e, à minha frente, um homem pela minha idade, tocava-se enquanto me via ler. Voltei a focar-me no livro e ele achou por bem passar mesmo a meu lado e murmurar qualquer coisa, que, com os nervos, nem distingui. Tornou a passar para a minha frente de pila na mão. Quis fugir mas tive medo que me seguisse, então enfiei-me o mais que pude atrás do meu livro e tentei ignorá-lo. Acabou por se afastar, eu não li nada, fui olhando pelo canto do olho para ver onde se dirigia e agarrei em tudo e corri para o carro. Já no carro, vi-o a subir e colocar-se numa mota. Arranquei e parei o carro mais à frente, o mais escondido que consegui. Ele passou. E eu reconheci-o. Era meu amigo de facebook, pessoa que aceitei por ser amigo de amigos meus. Apaguei o meu facebook.

Não temos de nos sujeitar isto, mas estamos sujeitas a isto, porque somos mulheres, porque não somos livres.

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Eu rejeitei a Mulher em mim porque não queria passar por isto, odiei o meu corpo, quis ser homem, quis ser livre, e só hoje entendo isto, só hoje tenho palavras e lágrimas para curar isto.

Por favor, fala. Chora. Tira isso de ti. Se não tens com quem falar, fala comigo. Não recalques, não te julgues, a culpa não é tua. A CULPA NÃO É TUA!


Ia escrever-vos sobre o banho incrível que me permiti tomar ontem, numa banheira cheia, com sal, calêndula, alecrim e lavanda - ritual do mês de Março da nossa comunidade querida -, mas acabei por contar-vos o que me impediu durante tanto tempo de ter momentos destes só comigo, e sentir verdadeiramente que os merecia.

Tu também mereces.