Não vivo devagar...

Tell me, what is it you plan to do with your one wild and precious life?
— Mary Oliver

Não vivo devagar se em vez de estar a viver o momento, estou a fotografá-lo.
Não vivo devagar se almoço a pensar no que há para fazer à tarde.
Não vivo devagar se agarro no telemóvel para ver as horas e 20min depois ainda estou agarrada a ele a correr o feed do facebook.
Não vivo devagar se coloco o telemóvel em cima da mesa enquanto janto com amigos.
Não vivo devagar se opto por levar o carro em vez de ir a pé.
Não vivo devagar quando à pergunta “o que vamos fazer?” respondo “qualquer coisa”.
Não vivo devagar se o reflexo do espelho tem mais importância do que um elogio.
Não vivo devagar quando as opiniões dos outros me prostram.
Não vivo devagar, nem vivo… quando vivemos presos nesta roda de hamster construída por nós e acreditamos ser livres.

E vocês, estão realmente a viver?

Manéis.

 
Wear your heart on your skin in this life.
— Sylvia Plath

Adoro acordar cedo aos domingos, talvez porque me saiba sempre a infância, aos dias sem pressas. Levanto-me e abro as janelas de par em par, deixo o sol entrar. Estendo a roupa e preparo um pequeno-almoço vagaroso. Gosto de cozinhar aos domingos, a falta de horários dá-me espaço para aproveitar cada momento. É quando faço panquecas e um bolo, ou quando encho a mesa de petiscos para irmos depenicando durante o dia.

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Gosto mesmo de domingos, domingos vagarosos, destes sem horas em que posso passar que tempos a olhar os gatos, a vê-los ser gatos, a aprender-lhes a lentidão dos gestos, a presença total. Isto de viver devagar tem muito que se lhe diga, se há dias em que me vou lembrando de estar presente, outros há em que as tarefas se atropelam e, quando dou pelo dia, já era. É então, aos domingos, que aprendo este ofício de ser e estar presente em tudo o que faço. Rego as plantas e retiro as folhas soltas, cuido a casa, leio, ou escrevo, mas deixo sempre espaço para o nada, esse vazio tão cheio de presente. É quando me sinto mais viva.

Hoje tem sido assim, a casa cheia desta luz dourada, o cheiro da roupa lavada que entra pelas janelas abertas e os gatos que vão dormitando aqui e ali. Foi por isso que escolhi este dia para honrar uma memória muito querida da minha mãe: fazer “Manéis”. Os “Manéis” eram uns bolinhos que a minha mãe fazia, numas forminhas muito antigas de folha de flandres, para o meu avô, que se chamava Manuel e era um guloso.

A semana passada, quando fui visitar os meus pais, encontrei as forminhas - “QUE LINDAS!!!” - exclamei, desgastadas pelo tempo e pelo uso mas tão lindas quanto a sua história, imaginem. “O quê?” - respondeu a minha mãe, que me ouvira da sala. “ISTO” - mostrava-lhe eu, carregando as 12 forminhas como a um tesouro. Ela sorriu - “São as forminhas dos Manéis, os bolinhos que eu fazia para o teu avô e que ele adorava. Chamam-se Manéis por causa dele. Leva-as, quando casei levei-as comigo, agora são tuas junto com a receita”. E eu, que uso o coração na pele, emocionei-me, está claro, não fosse eu, eu.

Bem cedo, enquanto o resto da casa ainda dormia, levantei-me e fui fazer “Manéis”, não poderia ser num outro dia qualquer, tinha de ser assim, neste domingo vagaroso de sol, numa mesa cheia de um pequeno-almoço sem pressas, com o André e o nosso sobrinho Gui, que nunca conheceram o meu avô mas que levarão dele o sorriso malandro, as flores, os gatos, a calma, as mãos nas bochechas ao topo da mesa e os “Manéis”, que é parte do que guardo em mim deste ser especial que foi o meu avô.





veg&tal

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A Sandra é das pessoas mais bonitas que conheço. Quis a vida que nos cruzássemos, sabe-se lá como, acho que nenhuma das duas se lembra bem, mas recordo-me das primeiras vezes que a vi, linda, em cima de um carrossel-palco, e eu, na plateia, a pensar o quão maravilhosa deveria ser aquela pessoa, para emanar um brilho daqueles. Tornei a vê-la noutras peças, com os seus ruivos caracóis, por essa altura já eu era fã, do Teatro do Mar, e dela. Nunca lhe disse isto.

Um dia, por circunstância, acabámos a jantar em casa dela. Batemos o vinho e acabámos a planear uma noite intensa de costura que, não acontecendo, foi pretexto para que os jantares improvisados e as noites de petiscadas se tornassem parte da nossa história. Em boa hora descobri que, esta luz que brilhava num palco, já reluzia na cozinha, e que o amor que lhe saía do peito se traduzia nas melhores iguarias vegetarianas.

Ficámos vizinhas, e eu não brinco com estas coisas do destino, mas é que tinha mesmo de ser assim. Meses volvidos, um restaurante perto vaga e o sonho dá-se! Nasce o Veg&Tal, que é de onde vos escrevo estas linhas.

Dona do abraço mais cheiroso, pariu esta casa-luz, esta bolha de respirar, este lugar longe do burburinho do mundo que corre. E não exagero quando o digo, a porta fecha-se atrás de mim e eu respiro fundo. Vir aqui é vir a casa dela, não há distinção, tudo quanto toca se transforma numa extensão de si mesma, e isso é tão bonito de se ver.

Fica em Sines, no Centro Histórico.
Apareçam.
♥︎

(re)decorar a vida

A nossa casa é o nosso ninho, o nosso abrigo, é onde nos refugiamos quando o mundo é demasiado, onde respiramos fundo e nos preparamos para as nossas batalhas. Mas é também uma extensão daquilo que somos e das histórias que criamos a dois. É reflexo daquela fase em que devorámos de uma só vez a primeira temporada de Stranger Things, ou de quando andámos viciados na Awesome Mix Vol 1 do Starlord. De todos os livros da Ana Teresa Pereira que devorei junto à janela e de todas as vezes que chorei a ver o Clint Eastwood sair da vida da Meryl Streep n’As Pontes de Madison County. Dos pequenos-almoços tardios de domingo e dos brinners entre amigos para fechar o fim-de-semana. Às vezes caótica, reflexo dos dias mais agitados, outras vezes calma, numa espécie de caos organizado, miscelânea ecléctica onde habitam lado a lado, pacificamente, a Odisseia de Homero e o Chewbacca.


            Mais do que vivermos em nossa casa, nós vivemos a nossa casa, somos apaixonados por cada recanto e tentamos tirar dela o maior proveito. No piso de baixo optámos por não ter portas e criar espaços amplos, a pouca mobília é quase toda amovível, o que nos permite virar o sofá para ter mais espaço para receber amigos, ou trocá-lo de lugar com a mesa de jantar para que mais pessoas caibam em torno dela. A cozinha é aberta para esse espaço e a man cave do André - que nem é cave nem só de homens - também. Num dia normal, entre duas pessoas com diferentes visões de lazer, é isto que nos permite estar juntos, mesmo que cada um esteja a fazer as suas coisas. Valorizamos muito o nosso tempo a dois, mas damos igual valor ao tempo que cada um tem a sós, para as suas coisas, para os seus hobbies, para si. O André gosta das suas noites de boardgames entre amigos, de ouvir podcasts e de jogar computador, eu gosto do silêncio, gosto de ler e escrever, e gosto muito de tardes de conversa sem horas. A decoração da nossa casa, a disposição dos nossos móveis, reflecte esta forma que temos de viver a vida e a nossa relação. É por isso que, de tempos a tempos, sentimos a necessidade de mudar as coisas de sítio, somos mutáveis, crescemos, aprendemos, e a casa acompanha-nos.

            Este fim-de-semana criámos um espaço de trabalho para mim, tirámos o toucador que restaurei em tempos, do andar de cima, e trocámo-lo de lugar com o piano. Assim, conseguimos dois espaços distintos e mais harmoniosos: um espaço de leitura, junto à janela e ao piano, e um novo espaço de trabalho junto dos livros e do André.

            Cada um terá a sua forma distinta de viver o seu tempo e o seu espaço, para nós é importante que seja real, que seja transparente e que seja reflexo da nossa essência. Acima de qualquer ideal, é do amor quotidiano que mais gostamos, do beijinho antes e depois de um jogo de computador - quem sabe as provações por que passará Geralt de Rivia?! - dos dias em que fazemos contas e vemos o mês maior do que os ordenados, e daqueles em que inventamos uma sopa que correu mal e acabamos a comer torradas, por isso, (re)decoraremos a nossa vida sempre que ela nos pedir, sabendo que o que mais importa é o amor.