V

Só mais um dia,
um dia luminoso e barulhento
por mim a dentro, 
um dia bastaria,
em prosa que fosse.

Mas dá-me para a melancolia,
para a limpeza, para a harmonia,
impacientam-me as migalhas
de pão na mesa, as falhas
da pintura do tecto,
as vozes das visitas, despropositadas,
sinto-me sujo como um objecto,
desapegado, desarrumado.

Trocaria bem esse dia
por um pouco de arrumação
- no quarto e no coração.


                               Terça-feira, 10 de Março

 

Manuel António Pina

 

Sines, 13 de Novembro de 2014

há sempre uma certa nostalgia que chega com a chuva. um não-sei-quê que se sente no peito e que nos aperta a garganta. há que tempos que não me dava para escrever nada, o diário amarelece num vazio teimoso. há coisas que nem em palavras se conseguem traduzir. há dias em que acordo de manhã e me sinto capaz de qualquer coisa "hoje, se quisesse, voava", mas depois desperto para a realidade que me rodeia: uma terra que não é a minha, mas que agora o é, embora eu o esqueça demasiadas vezes, a realidade de não ter um emprego nem perspectivas, a realidade de uma nova vida para a qual não me preparei. Procuro fazer coisas que nunca fiz, aprender coisas sobre as quais não conheço nada. Arregaçar as mangas e por mãos à obra. Agora quero aprender mais sobre bricolage, hoje quero ser carpinteira, amanhã posso ser outra coisa? apetece-me sujar as mãos, criar, ver crescer... como se responde à pergunta: "o que gostavas de fazer?", quando se quer tanta coisa? como se responde à pergunta: "o que gostavas de fazer?" quando nos estamos constantemente a travar, com ideias pré-concebidas como o "não vai funcionar", "não vou conseguir", "não me vai dar dinheiro". é que no fim, há contas para pagar, uma casa para sustentar, dois felinos e uma família para criar. sinto-me tão perdida. 

Pássaros em Círculo

(Antonio Gamoneda)

 

Atravessamos o jardim, 
                                e, sob os nossos passos,
a neve estala como pão acabado de fazer.

Tudo tem a cor da palavra
que ainda não foi escrita.
É a hora.

Abraçados no meio do silêncio
parecemos dois anjos de barro.

Não importa se te digo "não voltes tarde a casa",
da necessidade daquele que fica
não depende o reencontro.

Abro o gradeamento.
A sensação de perda gira dentro de mim
como um cão que ladra e que dá voltas
em redor de uma árvore.

Não importa se te digo para ficares.

A neve desnasce-se,
mostrando a fugacidade da beleza:
(amo-te porque sim, não para que o tempo
venha a ser mais benévolo comigo).

O sol reconcilia-nos com a morte.

É a hora.
O relógio dos pássaros serve de tecto ao dia. 




Josep M. Rodríguez