O Corpo pede Primavera.

Estamos a regressar devagarinho à superfície, depois de uns dias mergulhados numa bicheza qualquer que nos apanhou de surpresa — primeiro a mim, depois à Matilde, quando eu mal começava a levantar a cabeça.

Os dias foram-se arrastando, mais lentos, mais baços, com o cansaço a pesar no corpo e na alma. Coincidiram com a menstruação e com muitos dias de chuva cerrada, daqueles que encharcam até o pensamento. Só hoje é que senti, finalmente, a Primavera no corpo.

Tinha uma consulta marcada de manhã. A Matilde já estava melhor, e por isso ficou com a minha mãe, a brincar no jardim, enquanto eu ia.

Vesti umas calças de ganga, uma blusa leve, um colete de crochet por cima — e embora ainda me calçasse com o receio da lama, o corpo já pedia outra estação.

Saí com tempo, deixei a Matilde cedo e deixei-me levar devagar, a sentir o sol como quem reencontra um velho amigo.

Depois da consulta almocei com a minha mãe e voltámos para casa. A Matilde adormeceu no carro — brincar no jardim com a avó é bem mais divertido do que dormir a sesta.

Olhei-a pelo retrovisor, e o meu coração deu um salto no tempo. Vieram-me à memória os meus próprios Verões de infância: o cansaço bom depois do mar e da areia, o sal ainda na pele, a viagem de regresso com as pernas doridas de tanto correr. As tardes no jardim dos meus avós, debaixo das árvores, a inventar brincadeiras que duravam horas. O pão com manteiga e açúcar, o batido de morangos acabados de colher.

Olho para ela e quase sinto no meu corpo o cansaço desses dias antigos. E aquela paz de adormecer no carro, suada e feliz.

Os meus pais não tinham muito, e deram-nos tudo. Hoje, temos tanto... e tantas vezes sinto que não lhe dou nem metade.

Vivemos numa gaiola dourada, e eu só quero voar.

Não há moral nenhuma nesta história. Não é inspiracional, nem motivadora. Não serve para nada — a não ser para deixar aqui, despido, este coração que vos escreve.

E, se por acaso, este coração tocar ao de leve no vosso, que nos possamos encontrar no simples, no agora, com os pés bem assentes nesta terra que pulsa.

Que possamos escutar o que realmente importa, para lá do ruído.

Um café comigo.

A mulher que sou hoje encontra-se numa esplanada, em Sines, com a mulher que fui, antes de ser mãe. Ainda não nos sentámos, mas já a vejo ao longe, à procura de mim com um entusiasmo que reconheço bem. Sei que, dentro do seu peito, há uma pulsação ansiosa de quem espera um futuro bonito. Há 2 anos que repete exames pré-natal, os encontros familiares são duros, sabe que terá de responder a sorrir às perguntas feitas sem maldade que lhe arrancam pedaços ao peito. Sente que algo de errado se passa dentro dela e chora a culpa em segredo. Vejo-a acenar, sinto-lhe o alvoroço no peito, e quase posso afirmar que mal pregou olho esta noite.

Sorrio-lhe. Sorrio-me. Sento-me e sinto o tempo a dobrar-se sobre a mesa pequena entre nós. O cheiro do café mistura-se com a brisa da manhã. Cheira a mar.

Ela não perde tempo. Pergunta-me:
— E então? Como estás? Conseguimos engravidar? Como é ser mãe?

Conto-lhe como foi descobrir que vinha um bébé a caminho e como foram os primeiros meses desta gravidez tão sonhada. Depois respiro fundo e aperto o copo de água em cima da mesa, afastando-o de mim. Procuro as palavras certas mas os meus olhos já lhe haviam dito tudo. Devagar e pausadamente, falo-lhe da ecografia morfológica e do diagnóstico. Vi as lágrimas formarem-se nos seus olhos, como pérolas, derramando-se pelo seu rosto, salgando o café. Segurei-lhe na mão com força e sorri.

— Então… não sou mãe? — murmura.

Reconheço-lhe o medo, também penso muitas vezes se teria engravidado se tivesse sabido antes que havia esta possibilidade de diagnóstico, não pela bébé, mas pela mãe que imaginei ser. Por isso acolho o medo desta mãe que há-de ser, que já é, ainda que não o saiba.

— És. Da menina mais doce e corajosa que algum dia irás conhecer.

— E não tiveste medo?

Fico em silêncio um momento, porque há respostas que precisam de ser sentidas antes de serem ditas. Depois, respondo:

— Sim, tive medo. Muito. Um medo profundo e real, daqueles que não desaparecem só porque queremos que desapareçam. Tive medo de não ser capaz, de não saber amparar o desconhecido, de não ter força para os dias que se adivinhavam difíceis. Mas…

Ela inclina-se para mim. Oiço a minha própria voz do passado a sussurrar "mas…?" e sorrio.

— Mas esse medo transformou-se. Derreteu-se dentro de mim no instante em que a vi. E cada dia desde então tem sido um presente. Porque o amor que ela me trouxe não é um amor qualquer, é um amor que vê para além do que eu achava que devia ser. Ela ensina-me a olhar para as coisas como elas são, e não como eu imaginei que deviam ser. Ela fez de mim uma mulher corajosa, forte, resiliente, porque por ela serei capaz de qualquer coisa.

A minha versão do passado junta as mãos fechadas junto ao rosto, as lágrimas caem. Está a tentar juntar tudo na cabeça. A possibilidade da escolha, o medo, a certeza de que nada a prepararia para este amor.

— Então, eu devia escolher tê-la?

Seguro-lhe a mão sobre a mesa. Há um nó na sua garganta, e que se estende ao peito, que eu conheço bem.

— A escolha sempre foi tua. Mas se eu pudesse dizer-te uma coisa, seria esta: nada do que receias agora tem o peso que pensas. E tudo o que ainda não sabes será, um dia, o maior dos presentes.

O café arrefece entre nós. Ela ainda não o bebeu. Está perdida nos pensamentos, na possibilidade de uma vida que ainda não conhece. Mas, no fundo, acho que já sente. Já sabe.

Levanto-me. Ela olha para mim, meio perdida, como se quisesse puxar-me de volta para dentro do tempo.

— Cuida bem dela, mas, sobretudo, cuida bem de ti, ela precisará de ti inteira.

Viro costas e caminho para o presente. Deixo-a ali, sozinha, com o café e com a certeza de que, em breve, ela também será eu. E será muito, muito, feliz.

Escolher a vida.

Os dias esvoaçam como folhas ao vento, num dia de Outono. As mãos permanecem vazias.

Mergulho para dentro e reflicto sobre o tanto que se transformou em mim e em redor de mim. No mundo que existe para lá e alheado da minha existência. Não sei se têm a mesma sensação, mas de repente parece que o tempo acelerou, tento ancorar-me nos dias e eles fogem para longe. Olho as pessoas a meu redor, a minha família, os meus amigos, perscruto-lhes as rugas, o olhar mais cansado, as dores que principiam ou se acentuam. Estamos a envelhecer. E de repente isto é real. É muito real.

E eu sei que metade da vida é imenso, mas a parte que falta é de igual imensidão. Nunca fui de escrever para a morte, sobre a morte, nunca lhe tive medo, mas agora dou por mim a pedir-lhe que se distraia por uns tempos. Que ouça a gargalhada da Matilde e lhe deixe o tempo de quem lhe quer bem, junto dela, e de mim também.

Esse resto da vida que é tanto e nada quando se tem amor.

Tenho vivido o presente com uma espécie de saudade dos momentos que se vão consecutivamente. Talvez seja coisa da maternidade, das despedidas diárias: do andar que de repente é mais direito e não tão atabalhoadamente fofo, do gatinhar que foi sopro e memória, do vestido que já não serve, das expressões que deixam de ser de bébé...

E ao testemunhar o seu crescer, as despedidas diárias lembram-me que o tempo também molda aqueles que vieram antes de mim. Os meus pais, agora avós, caminham numa linha que um dia será a minha. De repente, olho para eles como olhava para os meus avós, e tenho dificuldade em aceitar isso. Como é que aconteceu? Como é que pisquei os olhos e estas pessoas que agarravam em nós à sexta-feira à noite para ir acampar em Melides, se transformaram em avós?

E isso coloca-me frente a frente com ela, a que tudo devora e transforma.

Sussurro-lhe:

Não tenho medo de ti, concede apenas mais tempo a quem veio antes de mim.

A morte, essa senhora de passos delicados, ronda, mas não entra. Conheço-a intimamente, como se já tivéssemos privado. Mas não lhe tenho medo. Tenho-lhe reverência. Sinto-a como um fogo ao longe, quente e intocável a lembrar-me que a urgência da vida é agora.

Há chama acesa que incendeia dentro, há vida a querer romper. Há sede, há fome, há dança que quer ser. Há chão a ser pisado, pés a querer caminhar.

A morte ronda, mas escolho a vida.

Amanhã faço 39 anos. E nunca senti tanta vida pulsar em mim. Olho com ternura a que fui mas, oh, como anseio a mulher que vive hoje em mim.

Dancemos.

O apego aos objectos.

Há uma dicotomia, em mim (lol, uma, ahaha) quando penso em sustentabilidade e minimalismo. Sei, são conceitos interligados e frequentemente complementares, contudo, para mim, esta noção de desprendimento dos objectos vai muito além de uma organização prática ou do consumo consciente. A verdade é que, mesmo procurando adoptar práticas mais sustentáveis - que, confesso, nos últimos tempos tem sido mais desafiante do que quando vivia no Alentejo - há uma parte de mim que se apega aos objectos como se, de alguma forma, eles fossem fragmentos da minha história pessoal. E, deste prisma, já falhei com o minimalismo.

Não vejo os objectos como meras coisas utilitárias ou decorativas. Cada um deles carrega uma memória, uma sensação, uma história que se funde ao que sou. O meu amor por peças com história, sejam herdadas da família, de casas que habitámos ou encontradas em segunda mão, é uma forma de criar raízes, ou de as firmar na terra. Estes objectos não são apenas bonitos ou sustentáveis; são pontes para o passado, para a vida que vivi, para as pessoas que amei. Mas também são eles que trazem magia aos meus dias. Uma arca pode ser um empecilho para muitas casas, para mim é a lembrança palpável da minha bisavó, um livro traz com ele as mãos e o coração de quem mo ofereceu, uma móvel comprado em segunda mão na década de 60, pelo meu avô, testemunha hoje o caminhar bamboleante da minha filha. Estes objectos, como tantos outros que habitam comigo, são pedaços de mim, da minha família, da minha história, e custam a ser deixados ir.

O processo de destralhe, que não deixo de entender como necessário e benéfico, é para mim uma constante batalha emocional. Quando me vejo a dar ou doar algo, sinto como se estivesse a entregar pedaços da minha alma, pedaços de momentos que não volto a reviver. Guardo saudades desses objectos, ainda que sabendo que (alguns) não são fundamentais para a minha felicidade. É quase um paradoxo: querer estar mais leve e, ao mesmo tempo, sentir que estou a perder parte de mim.

Com a chegada da Matilde, esta visão tornou-se clara porque senti necessidade de a desafiar. De repente somos mais um, mais coisas. Pelo que aprendi, aos poucos, a desapegar. Não por força da moda ou da pressão para encaixar em nós uma estética minimalista - preciso de o referir porque, no auge das minhas partilhas sobre zero desperdício, vivi esta luta interna constante onde nunca me encontrei - mas por necessidade. A vida com ela exige uma reorganização e uma nova forma de ver as coisas, mudou tudo e, no processo rocambolesco, também mudaram dois pais que se tentam encontrar nas suas vidas, na sua casa e nas suas tralhas. Partes de nós também partiram e, com elas, objectos com os quais já não nos identificamos, pelo que este processo de destralhe, embora difícil de gerir internamente, também traz consigo uma sensação de alívio pela qual muitas vezes anseio.

Fiz as pazes comigo. Sei que sou mais do que o minimalismo ou a ideia de um espaço perfeito e despojado. Esta casa, que cohabito com objectos que se enchem de alma, de histórias, e que, também por isso, não perdem a sua utilidade, continua a ser o meu refúgio e reflexo fiel daquilo que sou, que somos. E, penso agora, talvez seja esse o verdadeiro equilíbrio: ser sustentável, sem deixar de lado o apego emocional às coisas que fazem parte da minha identidade.

[Termino nesta nota deixando já o spoiler: depois de 2 anos a morar nesta casa e não a sentindo ainda verdadeiramente nossa - a única divisão pensada e decorada, até então, foi o quarto da Matilde - estamos agora em redecoração da despensa! Confesso que estou muito entusiasmada e a sentir que já precisava de sentir isto dentro! Depois mostro!]