"It's Never Over"

[🇬🇧 english below]

Porra”, foi apenas o que consegui dizer quando as luzes da sala Manoel de Oliveira, no Cinema São Jorge, se acenderam. Ainda a limpar as lágrimas, a agradecer à Fátima que comprara os bilhetes mal abriram as bilheteiras, e a abraçar o Miguel que ainda estava naquele plano em que ficamos todos quando algo nos arrebata o peito.

Já no carro, só conseguia pensar como é bonito poder dar à minha filha um mundo onde existiu um Jeff Buckley, onde a voz dele ainda ecoa e inspira tantos músicos e criativos. Buckley deixou-nos demasiado cedo, mas será lembrado como sempre desejou, pela música que fez nascer.

Um documentário humano e pessoal, profundo como só de um lugar de total vulnerabilidade se consegue. O retrato íntimo de um homem de uma sensibilidade rara, que sentia o mundo com o coração a habitar cada poro da sua pele, e que me fez questionar se sobreviveria à exposição e à crueldade dos dias de hoje. Comoveu-me o olhar atento e inteiro - das mulheres da sua vida, dos amigos - sobre ele, destecendo mitos e trazendo à luz a humanidade - e a verdade - que o habitava. Será hoje, ainda possível, conhecer alguém tão inteira e vulneravelmente? Ou não seremos nós, agora, um conjunto de superficialidades e distintos ângulos de quem connosco divide o tempo?

“Grace” é dos álbuns mais avassaladores que escutei em toda a minha vida, e Jeff Buckley ocupa nos meus dias um lugar cativo ao peito. Mesmo quando se torna duro escutar a sua voz. É impressionante, e sempre surpreendente, como tecemos relações tão profundas com a arte.

”It’s never over” é um documentário que vale a pena ser visto e revisto. É um pedaço de Buckley resgatado, um espaço onde é possível coabitar com ele. Com os seus demónios, com o mais Humano que podemos ambicionar.

 
 

🇬🇧

“Fuck”, was all I managed to say when the lights came up in the Manoel de Oliveira room at Cinema São Jorge. Still wiping away tears, still thanking Fátima for getting the tickets the moment sales opened, and holding Miguel, who was still somewhere inside that space we all fall into when something cracks open our chest.

Later, in the car, I couldn’t stop thinking how beautiful it is to give my daughter a world where Jeff Buckley once existed — where his voice still echoes, still moves and inspires so many artists and dreamers. Buckley left far too soon, but he’ll be remembered just as he wished: through the music he brought into being.

A human, deeply personal documentary — profound in the way only something born from utter vulnerability can be. An intimate portrait of a man of rare sensitivity, who felt the world with a heart that seemed to live through every pore of his skin. It made me wonder whether he would have survived the exposure and cruelty of today’s world.

I was moved by the attentive, wholehearted gaze — of the women in his life, of his friends — that looked upon him, unravelling myths and bringing to light the humanity — and truth — that lived within him. Is it still possible, today, to truly know someone in such wholeness and vulnerability? Or have we become, now, a collection of surfaces and shifting angles reflected by those who share our time?

Grace remains one of the most devastatingly beautiful albums I’ve ever listened to, and Jeff Buckley holds a permanent, tender place in my heart — even when it becomes painful to hear his voice. It never ceases to amaze me how deeply we can bond with art.

It’s Never Over is a documentary worth seeing, and seeing again. It’s a fragment of Buckley brought back to life — a space where one can dwell with him. With his demons. With all that is most achingly human within us.

Três coisas que me resgataram a alma em Maio

Maio foi mês de contrastes. Teceu-se de dias pesados e cinzentos, de desafios, de gestos que se repetem até ao cansaço, de dias em que o corpo vai… mas a alma fica para trás. Mas também se fez dos gestos pequenos e ordinários que, de tão repetidos, se cai no erro de lhes retirar valor, de notícias que nos trouxeram leveza e de fins de semana de sol, em família.

Por fim, entre o correr dos dias e o tentar abrandar para ver o que está além, houve três coisas que me resgataram. Três encontros com a beleza — da imagem, da palavra, do som — que me devolveram àquilo que é essencial.

1. A beleza da imagem: "Quando a Vida te Dá Tangerinas" (Netflix, 2025)

Seguramente a série mais bonita que vi nos últimos anos. De uma beleza que não grita, aquela beleza que nasce do real, do imperfeito, do importante. Escrita pela enigmática Lim Sang-choon, esta história que se vive na ilha de Jeju, de gente comum, de afectos quase invisíveis mas intensamente presentes, resgatou-me dos dias cinzentos de sobrevivência e devolveu-me o fôlego.

Pela primeira vez, em muito tempo, voltei a acreditar num futuro bonito. Foi como se alguém me tivesse posto uma mão sobre o ombro e sussurrado: “Continua. Ainda há calor, ainda há beleza, a vida não está no extraordinário. Está aqui. O sangue pulsa, e a vida é agora, e agora, e agora, num constante reinventar, a cada estação, sem perder a fé, o amor, e o quente de quem segura a nossa mão dentro de um bolso.”

2. A beleza da palavra: "O Livro Branco", de Han Kang (Dom Quixote, 2019)

Na sexta-feira passada, fiz algo que há muito não fazia: resgatei tempo para mim, não para limpar a casa, não para resolver recados, para respirar — para cuidar da alma. Ia ver um concerto e, como cheguei duas horas antes para levantar o bilhete, entrei na Bertrand. E este livro escolheu-me, como acontece sempre com os livros que nos transformam.

Sentei-me numa esplanada, abri a primeira página… e quando dei por mim, tinha passado uma hora e meia. Quando levantei os olhos, o céu parecia mais azul, as plantas mais verdes, o mundo mais vivo.

Han Kang escreve com uma delicadeza cortante. Cada fragmento é uma oferenda à ausência, ao luto, à memória. Um livro sobre o que não chegou a ser, uma prece, uma forma de dar corpo à ausência. É um livro para ser lido com tempo, com silêncio por dentro.

Terminei-o no dia seguinte, e tenho-o junto a mim desde então, porque ainda não descobri como sair dele. Ficou-me na pele.

3. O concerto “Música Sem Tempo - Instrumentos Tradicionais Portugueses” — Projecto Aduf&lectrónica - WNMD 2025 - Concerto N.º 1

Fui sozinha ao concerto de abertura do festival World New Music Days. O projecto Aduf&lectrónica, de Rui Silva e Bruno Gabirro. Com a presença das vozes imensas das cantadeiras Joana Negrão e Ana Paula Rodrigues. Foi bonito, tão bonito. É difícil explicar o que se sente quando o som ancestral do adufe se funde com paisagens electrónicas — não numa tentativa de apagamento, mas num reencontro. Ali, a tradição não é coisa antiga: é semente. É raiz a reinventar-se.

Na espera para entrar, conheci um compositor da Nova Zelândia. Partilhámos palavras sobre as mulheres do nosso país, sobre o poder do adufe e o valor das canções do povo. Falámos da urgência de não deixar morrer essas raízes — e da alegria de vê-las renascer de outras formas.

Foi um momento profundamente bonito, emotivo, de muito orgulho e sobretudo de sentido de pertença, que nos falta tanto nos dias que correm. A música do povo, com toda a sua força, foi tocada para um mundo inteiro naquela sala.

——

Três encontros, três caminhos de volta a nós, ao que é importante, ao que nos resgata. A reflexão de que a vida é mais simples do que cremos. Que somos muitos, muitos mais, a viver nesta angústia dos dias que parecem não ter horas suficientes e que talvez seja tempo de, por fim, abrandarmos e olharmos para o que é, afinal, importante.

A vida é agora, e agora, e agora.

Festa do Adufe, 2025

Em 2020 comprei o meu adufe. Não venho de uma linhagem de adufeiras, ninguém na família o tocava, não tenho memória herdada — mas o que senti foi mais antigo, uma memória resgatada de outros tempos, de outras mãos. Lembro-me de ver um vídeo da Mariana Root, de escutar a sua voz com o adufe nas mãos, de repetir vezes e vezes sem conta aquele vídeo. Foi avassalador, sem lógica alguma, mas de uma verdade que não sei explicar. E embora a vida se tenha tecido de tantas linhas — a mudança da casa, a chegada da Matilde, os dias que se atropelam — o adufe esteve sempre ali, carregado de divisão em divisão da casa, tocado timidamente, visível, sempre, para que não me esquecesse de lhe chegar.

Nos últimos tempos, guiada por mãos e vozes sábias que se vestem de negro, tenho mergulhado num caminho de resgate. Um caminho que me leva a escavar dentro e fora de mim, à procura daquilo que nos faz povo, que nos faz Mulher, que nos faz casa. Com a madrinha da Matilde, aprendi e tenho vindo a aprender cantigas que são oração e espanto, colo e firmeza, chão e embalo. Cantigas de mulheres, maioritariamente beirãs, passadas de boca em boca, de geração em geração, que me devolvem algo que sempre foi meu e eu não sabia.

Regressei, assim, ao adufe, às aulas do Rui Silva, e a um lugar que sabe sempre a casa.

Este fim de semana fomos à Festa do Adufe, em Monsanto. Fomos os três, em família. Chegámos já tarde, na sexta-feira à noite, depois de perder os dois primeiros dias — os dias dedicados às oficinas, às aulas que tanto ansiava. Deixei o André e a Matilde na casinha onde íamos ficar, e subi ao Forno Comunitário, o coração da festa, onde gentilmente nos haviam guardado o jantar.

À medida que me aproximava, subindo pelas ruas estreitas de mãos nos bolsos e frio nas bochechas, fui começando a ouvir os primeiros sons de adufes a ecoar entre as pedras. Senti o peito tremer. O cheiro da lenha, o crepitar da fogueira, o escuro iluminado pelas brasas - já se tocava e cantava à fogueira. Encontrei a Sofia, que partilhou casa, colo, braços e abraços connosco, estes dias, fomos a casa e regressámos à fogueira. A D. Amélia cantava a última cantiga da noite e, de repente, reconheci o trecho que canto para a Matilde desde que soube que já vivia em mim.

Cheguei tarde à Festa do Adufe, mas ali, àquela fogueira, chegara exactamente no tempo certo.

No sábado aprendemos a construir uma Marafona, com a D. Amélia, a sua história e significado, vimos a Aduzinda a fazer os potes de flores, e ainda que a chuva não previsse tréguas, subiu-se ao castelo para a festa da Divina Santa Cruz. Ali, entre as pedras e o céu, senti a força do que permanece. Vi rodas de adufes a formar-se no largo, no forno, em todos os lugares e no antigo lagar, por entre elas, a Matilde a correr e a rir. E senti que o mundo podia parar naquele instante, porque estava tudo certo.

Oferecer-lhe isto — este som que é oração, este toque que é pulsar do coração da Terra — foi uma das coisas mais importantes que já fiz. Senti que lhe dava algo que nenhuma escola, nenhum ecrã, nenhuma pressa poderia dar. Um laço invisível mas firme ao que somos, à nossa história, às mulheres que vieram antes, às que estão agora e às que virão.

Ouvi, toquei, cantei e dancei. Conheci mulheres que seguram nas mãos e nas vozes esta arte antiga com uma dignidade que me comoveu. Mulheres de uma sabedoria imensa, guardiãs de histórias e de vida. Mulheres que buscam encontrar-se, mulheres que resgatam a sua história, mulheres-filhas, mulheres-mães, e sobretudo corações que se permitiram ler e ser lidos. O coração regressou cheio e a garganta vazia de palavras perante a imensidão destes dias.

Num mundo que nos empurra para o igual, para o imediato, para o que se esquece assim que se vê, a Festa do Adufe e o resgate de tradição que representa nos dias de hoje é resistência. É não deixar morrer o que faz de nós… nós. Obrigada a quem a sustenta em alma, amor e força.

A prece que teço à Matilde, deixo-a a todos nós: que se escutem os sons que ecoam de outros tempos. E que, entre brinquedos e risos, haja sempre espaço para um adufe. Para um canto. Para um lugar onde o coração encontra casa... ainda que não o saiba explicar.

 
 


Este artigo dedico-o à minha família Galega, e ao trabalho que fazem por manter viva as suas próprias tradições, por me falarem sempre em galego, por cantarem e tocarem a sua música e, sobretudo, por me inspirarem a resgatar e a passar à Matilde o que de tão nosso temos. Maite, Héctor, Maite e Carlos: amo-vos.