Depois dela.

Acordei com o gato Sebastião, mimado, a pedinchar mimo a horas indecentes da manhã. Levantei-me, espreitei a rua, estava escuro e frio, ainda tinha mais uma hora para dormir, voltei a deitar-me. Na cama, a Matilde já dera uma volta completa a dormir, assim que me deito, encaixa a cabeça debaixo do meu braço, o nariz quase toca a minha cintura. Há noites que se tem encaixado assim. Aos pés da cama dois gatos já ronronam. A gata aninha-se nas pernas do André, que esta noite foi delegado ao colchão no chão para dar espaço às acrobacias nocturnas da bébé.

Estico o meu braço, com a mão aconchego-lhe o fundo das costas, odeia ser tapada e geralmente acorda quando o faço, mas sei que se sente confortável quando a abraço assim.

Como era a vida antes dela chegar? Penso. Há dias em que sinto muitas saudades da Inês (das várias) que fui, dias em que questiono a decisão de querer ser mãe, principalmente nos dias em que maternar é demasiado doloroso (quando não?!). Quando o choro é dilacerante, quando as horas parecem não passar, quando todas as decisões parecem erradas.

Depois sinto o seu pequeno corpinho junto ao meu, o seu respirar, escuto o seu gargalhar, a forma como já responde ao que lhe pergunto, as relações que tece a seu redor, a forma como se move no mundo. De súbito, o passado já foi. Guardado num louceiro, à vista do recordar, mas longe o suficiente para dar espaço a este futuro que me entra de rompante peito adentro a cada despertar.

Vou levantar-me dentro de pouco tempo, iremos abrir juntas as janelas à manhã, dizer adeus aos autocarros amarelos que já passam lá em baixo e, com sorte, passará um comboio que levará com ele uma gargalhada da Matilde e um "não há" assim que a última carruagem desaparecer por detrás dos prédios.

 
 

Sobre a escrita e a memória feita presente.

No sábado consegui ver um filme, enquanto jantava no sofá, depois do A. se deitar com a bébé. Há muito que não o fazia, vou conseguindo ver séries, encaixando episódios aqui e ali, nos dias de maior carga mental, para desligar a cabeça (que ironia 🫠).

Queria um filme leve, que não me fizesse pensar na vida, mas que me levasse daqui por umas horas. E fê-lo, medíocre para filme leve, enredo previsível, falas meio forçadas, actores meh e com zero química. Tudo muito atabalhoado e a história que podia ter sido bem trabalhada deixou-se ficar pela superfície. Contudo, houve uma frase no final do filme que me ficou a entoar nas entranhas.

As personagens envolvem-se e acabam por se separar abruptamente, um ano mais tarde - assim o parece - reencontram-se “ao acaso”, e ela pede-lhe desculpa pela forma como tudo terminou. Escritora, e com um livro acabado de lançar, diz-lhe:

“- A questão é… tive saudades tuas. A cada minuto. E a escrita é assim. Permite-nos agarrar algo que perdemos. Então, fiz isso.”

E eu fiquei sentada no sofá, depois do filme terminar, a tentar digerir esta frase.

O A., numa conversa de fim de dia que tivemos há umas semanas, perguntava-me se eu já tinha deixado partir alguém da minha vida, deixar ir para sempre, não lembrar, não escrever, não forçar o reencontro, e a verdade é que não sei como se faz isso. É como se tivesse sempre toda a gente na minha vida, ainda que não, porque é só doido, porque não há tempo nem espaço mental ou emocional para ter toda a gente com quem privámos nos nossos dias, mas eu consigo falar com quem quer que seja do meu passado e tecer uma ponte para o agora. Simplesmente porque aquela pessoa guarda uma parte de mim, e eu guardo uma parte dela, por muito breve que tenha sido o encontro.

E quando a linha se destece, e os encontros se perdem para lá da memória… eu tenho a escrita. E na minha escrita tudo existe ao mesmo tempo. Tudo se conserva exactamente como foi. Numa folha de papel de arroz, muito fininha e gasta, ou num diário amarelado cheio de rabiscos, numa nota escondida no telemóvel, ou em partilhas no blogue. A escrita torna eterno o que nos vai dentro, talvez por isso também haja pedaços de nós que nunca ousamos escrever.

Escrever dá-me vida. Para quem, como eu, não lida bem com isto de se ser só uma coisa, permite-me, em parte, viver todas as vidas nesta mesma.

Pronto, era só isto que precisava de aqui trazer. O que pensam disto?

 
 

A dança ou o princípio da paixão.

"Cross, volta da senhora, mão na cintura."

2 beijos, no rosto, à despedida.
A mão que desliza do antebraço ao cotovelo, do cotovelo ao pulso e se demora nas pontas dos dedos.

"Mais perto."

O tempo suspenso que antecipa um beijo.

"Mais perto."

O toque, o arrepio, a inquietação, o calor. A música que apenas dois corpos escutam.

A paixão é um sítio de onde se regressa escancarado e desfeito. O amor é outra coisa.
A paixão rasga-nos a saia. Apaga as luzes. Rouba-nos pela cintura, esquece a comida ao lume. E vicia. A paixão vicia.
A paixão devia vir com termo de responsabilidade a assinar por ambas as partes.

 

Frederic Forest, Lovers - Etude 10

 

13 factos sobre mim que escolhi esconder.

  1. A minha cabeça funciona como o meu browser de internet, 130 tabs abertas e organizadas em 30 grupos que já ocultei para não me criarem ansiedade.

  2. Não sei o que é o equilíbrio, ora estou hiperprodutiva ora perdi o dia inteiro sem concluir nada. 1h do meu tempo não dura o mesmo todos os dias.

  3. Quase nunca atendo o telefone. Às vezes consigo reunir força suficiente para retomar a chamada, outras vezes (muitas) nunca devolvo. Falar ao telefone deixa-me ansiosa e preciso de me preparar para o fazer. O mesmo com as mensagens escritas que nem sempre respondo logo - isto que a internet e os smartphones arranjaram, de estarmos sempre disponíveis, faz-me sentir ansiosa 99% do tempo.

  4. Quero aprender tudo, viver tudo, sentir tudo. Aceito a minha humana condição e a impossibilidade, mas não deixo de sonhar e de me permitir experimentar.

  5. Quando embarco nesta experimentação entro em hiperfoco, leio tudo sobre, compro tudo o que preciso, e quando chega a altura de passar à prática, paraliso. Porque sou perfeccionista e falhar nunca é opção.

  6. O meu cérebro lógico sabe que errando se vai longe, mas daí a aceitar vai um passinho, muitos, de gigante.

  7. Destes últimos dois pontos resultam 59 hobbies na gaveta, 7 projectos que nunca viram o sol, e um livro que nunca estará bom o suficiente.

  8. Numa sala cheia de pessoas que me adoram, se sentir que há uma que não me curte… adivinhem onde me vou sentar! Yah, não bato bem.

  9. Vivi a minha vida toda a sentir que não era boa o suficiente, para nada do que me passasse pela cabeça candidatar, e que as pessoas não gostavam assim tanto de mim. Isto fez com que muitas vezes me afastasse eu das pessoas, sempre de forma inconsciente, mas crendo que, óbvio, nunca sentiriam a falta.

  10. Não sei lidar com barulhos fortes, o choro da minha filha estilhaça-me o peito. Portas a bater fazem-me saltar batimentos cardíacos.

  11. A Inês que combina saídas e encontros quer genuinamente que aconteçam. Nunca sei que Inês aparece no dia marcado, mas muitas vezes não é a mesma. Navego entro o ermita e a socialite. Nem eu me entendo.

  12. Estes pontos aleatórios sobre mim buscam ser farol para quem se sente um bicho estranho no meio de tanta gente funcional, com empregos “9 to 5” de uma vida e que sabem desde sempre o que vieram fazer ao mundo. Curtia, já curti mais, agora já sou feliz por ter sido tanta coisa e ter vivido tanto mundo com tanta gente.

  13. Já me odiei muito, mas já aceitei a provável neurodivergência, que para lá disto tudo, me dá uma sensibilidade que me faz sentir o mundo desta forma quase visceral.