Equinócio de um Outono Interior

[🇬🇧 version below]

Setembro chegou como quem estende um xaile sobre os ombros, promessa de abrigo, de resguardo. Por baixo dele, um peito em alvoroçado desassossego. A iminência de uma mudança de casa, que começou cheia de entusiasmo, e que entrou numa espécie de limbo que sufoca: na nova casa esperam-me varandas cheias de sonhos, a minha biblioteca, as gargalhadas da Matilde entre portas, e nas mãos que acariciam as suas paredes a urgência de lhe dar forma, de inscrever nela a nossa história; enquanto isso, na antiga que é ainda o hoje, continuamos à espera que alguém queira habitá-la, sem que as visitas se transformem promessa. É cansativo viver assim, entre dois mundos - o que já não é sustentável e o que tanto desejo - como quem tenta manter um pé em cada margem do rio sem conseguir atravessá-lo.

Ainda nesta travessia, a viagem ao Porto com a Matilde, para a consulta multidisciplinar com a Equipa de Fendas. Saímos de lá com boas notícias: ela está bem, muito bem, e os médicos muito felizes com os resultados. Senti orgulho e alívio e, ao mesmo tempo, um aperto no peito de mãe que pressente os desafios que ainda virão. Nestas consultas, onde tantas famílias se cruzam, percebo de forma muito concreta a importância da representatividade - algo que, do alto do meu privilégio, nunca havia sentido tão de perto o peso e a urgência. Ali, naquele espaço partilhado, é impossível esquecer que não estamos sozinhos, as dores dos outros são verdadeiramente, e de forma muito crua, as nossas.

À saída do Hospital, não fosse a minha vida uma espécie de comédia dramática regadinha a humor negro, o nosso carro avariou. Entre o riso e o desespero só conseguia pensar em mais uma volta que tinha de dar ao nosso orçamento familiar para conseguir gerir tudo isto. A Matilde brincava alheada, com a sua fralda de pano, a afugentar o sono. Eu só queria espantar os receios que me habitavam o peito. 

(pensava, enquanto escrevia tudo isto, que  que é quase como um reflexo interior de um eclipse: uma luz que irradia dentro, com tanta força e fé, mas que por instantes se encobre. O eclipse de ontem não foi visível no nosso céu, mas sinto que o carrego dentro de mim -  esta claridade prometida e ainda velada.)

Nesse mesmo dia, a custo, levámos o carro até à casa nova da minha irmã, que nos esperava com almoço e com aquele sorriso que soluciona metade dos meus problemas ainda antes de eu os proferir. A Matilde estava toda ela alegria: caminhou pela horta, apanhou um tomate, plantou girassóis com a tia, inspeccionou as abóboras, correu, riu e brincou até se cansar. 

Quando chegámos a casa, terminado o fim de semana, dispus sobre a mesa as abóboras que nos ofereceu e sorri - a generosidade simples da partilha das colheitas, de uma mesa farta, de uns braços que acolhem as nossas lágrimas. Junto às abóboras, tirei da fruteira as bananas maduras, e sem pensar muito nos gestos que se seguiram, e sem planos, cozi um bolo doce que encheu a cozinha de cheiro a casa e canela.

Entendo, nestes gestos pequenos, que a minha prática espiritual, tantas vezes adiada pela correria dos dias, acontece afinal aqui. Quando me deixo alinhar com a época do ano, com aquilo que a terra dá, o meu coração encontra calma. É nessa presença que sinto que pertenço. É também essa a presença que me resgata dos momentos menos bons, dos desafios.

Chega de mansinho o Equinócio de Outono, já hoje, dia e noite em perfeito equilíbrio. É o convite para deixar ir o que já não serve e a confiar no que fica a germinar debaixo da terra, invisível mas vivo. Eu sei que me falta paciência, que quero sempre tudo para ontem - e há angústia nessa pressa. Está aí o ensinamento, na sabedoria da terra: aceitar o silêncio do inverno como parte do ciclo, e acreditar que, mesmo sem ver, algo já se prepara.

É no entrelaçar dos contrários que a vida se faz inteira: sombra e luz, sufoco e abundância, medo e ternura. Tudo ao mesmo tempo.

🇬🇧 Equinox of Inner Autumn

September arrived like someone draping a shawl over the shoulders, a promise of shelter, of refuge. Beneath it, a heart in restless commotion. The imminence of moving house, which had begun full of excitement, has slipped into a suffocating limbo: in the new home, balconies full of dreams await me, my library, Matilde’s laughter echoing between doors, and in the hands caressing its walls, the urgency to give it shape, to inscribe our story there; meanwhile, in the old house, still part of today, we wait for someone to want to live there, without visits ever becoming a promise. It is exhausting to live this way, between two worlds - what is no longer sustainable and what I so desperately desire - like trying to keep a foot on each bank of a river without being able to cross it.

Amid this journey, there was also the trip to Porto with Matilde for the multidisciplinary consultation with the Cleft Team. We left with good news: she is well, very well, and the doctors were pleased with the results. I felt pride and relief, and at the same time that tightness in a mother’s chest, sensing the challenges yet to come. In these consultations, where so many families meet, I understand in a very concrete way the importance of representation - something I had never felt so intensely, from the height of my privilege. In that shared space, it is impossible to forget that we are not alone; the struggles of others are truly, and very acutely, our own.

On leaving the hospital, as if life were a darkly comic drama, our car broke down. Between laughter and despair, I could only think of yet another adjustment I’d have to make to our family budget. Matilde played obliviously, twirling her muslin swaddle between her fingers, warding off sleep. I just wanted to chase away the fears that inhabited my chest.

(I thought, while writing all this, that it is almost like an inner eclipse: a light radiating within, with so much strength and faith, but momentarily covered. Yesterday’s eclipse could not be seen in our sky, yet I carry it within me - that promised light, still veiled.)

Later that day, somehow, we managed to take the car to my sister’s new home, where she was waiting with lunch and that smile that manages to solve half my problems before I even voice them. Matilde was pure joy: wandering through the garden, picking a tomato, planting sunflowers with her aunt, inspecting the pumpkins, running, laughing, and playing until she was tired.

Back home, at the end of the weekend, I set the pumpkins we had been given on the table and smiled - the simple generosity of sharing the harvest, a bountiful table, arms that welcome our tears. Beside the pumpkins, I took the ripe bananas from the fruit bowl and, without overthinking the steps and without plans, baked a sweet banana cake that filled the kitchen with the scent of home and cinnamon.

I understand, in these small gestures, that my spiritual practice, so often postponed by the busyness of the days, actually happens here. When I allow myself to align with the season, with what the earth gives, my heart finds calm. It is in this presence that I feel I belong. It is also this presence that rescues me from the harder moments, from the challenges.

The Autumn Equinox quietly approaches, today, day and night in perfect balance. It is an invitation to let go of what no longer serves and to trust in what is germinating beneath the earth, invisible but alive. I know I lack patience, that I always want everything yesterday - and there is anguish in that hurry. Yet therein lies the teaching, in the wisdom of the earth: to accept the silence of winter as part of the cycle, and to believe that, even unseen, something is already preparing itself.

It is in the intertwining of opposites that life becomes whole: shadow and light, struggle and abundance, fear and tenderness. All at once.

Um café comigo.

A mulher que sou hoje encontra-se numa esplanada, em Sines, com a mulher que fui, antes de ser mãe. Ainda não nos sentámos, mas já a vejo ao longe, à procura de mim com um entusiasmo que reconheço bem. Sei que, dentro do seu peito, há uma pulsação ansiosa de quem espera um futuro bonito. Há 2 anos que repete exames pré-natal, os encontros familiares são duros, sabe que terá de responder a sorrir às perguntas feitas sem maldade que lhe arrancam pedaços ao peito. Sente que algo de errado se passa dentro dela e chora a culpa em segredo. Vejo-a acenar, sinto-lhe o alvoroço no peito, e quase posso afirmar que mal pregou olho esta noite.

Sorrio-lhe. Sorrio-me. Sento-me e sinto o tempo a dobrar-se sobre a mesa pequena entre nós. O cheiro do café mistura-se com a brisa da manhã. Cheira a mar.

Ela não perde tempo. Pergunta-me:
— E então? Como estás? Conseguimos engravidar? Como é ser mãe?

Conto-lhe como foi descobrir que vinha um bébé a caminho e como foram os primeiros meses desta gravidez tão sonhada. Depois respiro fundo e aperto o copo de água em cima da mesa, afastando-o de mim. Procuro as palavras certas mas os meus olhos já lhe haviam dito tudo. Devagar e pausadamente, falo-lhe da ecografia morfológica e do diagnóstico. Vi as lágrimas formarem-se nos seus olhos, como pérolas, derramando-se pelo seu rosto, salgando o café. Segurei-lhe na mão com força e sorri.

— Então… não sou mãe? — murmura.

Reconheço-lhe o medo, também penso muitas vezes se teria engravidado se tivesse sabido antes que havia esta possibilidade de diagnóstico, não pela bébé, mas pela mãe que imaginei ser. Por isso acolho o medo desta mãe que há-de ser, que já é, ainda que não o saiba.

— És. Da menina mais doce e corajosa que algum dia irás conhecer.

— E não tiveste medo?

Fico em silêncio um momento, porque há respostas que precisam de ser sentidas antes de serem ditas. Depois, respondo:

— Sim, tive medo. Muito. Um medo profundo e real, daqueles que não desaparecem só porque queremos que desapareçam. Tive medo de não ser capaz, de não saber amparar o desconhecido, de não ter força para os dias que se adivinhavam difíceis. Mas…

Ela inclina-se para mim. Oiço a minha própria voz do passado a sussurrar "mas…?" e sorrio.

— Mas esse medo transformou-se. Derreteu-se dentro de mim no instante em que a vi. E cada dia desde então tem sido um presente. Porque o amor que ela me trouxe não é um amor qualquer, é um amor que vê para além do que eu achava que devia ser. Ela ensina-me a olhar para as coisas como elas são, e não como eu imaginei que deviam ser. Ela fez de mim uma mulher corajosa, forte, resiliente, porque por ela serei capaz de qualquer coisa.

A minha versão do passado junta as mãos fechadas junto ao rosto, as lágrimas caem. Está a tentar juntar tudo na cabeça. A possibilidade da escolha, o medo, a certeza de que nada a prepararia para este amor.

— Então, eu devia escolher tê-la?

Seguro-lhe a mão sobre a mesa. Há um nó na sua garganta, e que se estende ao peito, que eu conheço bem.

— A escolha sempre foi tua. Mas se eu pudesse dizer-te uma coisa, seria esta: nada do que receias agora tem o peso que pensas. E tudo o que ainda não sabes será, um dia, o maior dos presentes.

O café arrefece entre nós. Ela ainda não o bebeu. Está perdida nos pensamentos, na possibilidade de uma vida que ainda não conhece. Mas, no fundo, acho que já sente. Já sabe.

Levanto-me. Ela olha para mim, meio perdida, como se quisesse puxar-me de volta para dentro do tempo.

— Cuida bem dela, mas, sobretudo, cuida bem de ti, ela precisará de ti inteira.

Viro costas e caminho para o presente. Deixo-a ali, sozinha, com o café e com a certeza de que, em breve, ela também será eu. E será muito, muito, feliz.

Um bocadinho mais do mundo.

A Matilde começou a caminhar ontem. Já o fazia agarrada às coisas, agarrada a nós, é muito cautelosa, arrisca mas sempre sentindo uma base segura. Ontem levantou-se sozinha, sem procurar apoio e começou a caminhar. Ainda não acredito que consegui apanhar em vídeo, foi tão rápido! Vi e revi o vídeo mais vezes do que será bonito admitir, os passinhos de teste, o olhar confiante que cruzava o meu, o sorriso e as gargalhadas de pura felicidade. A minha filha caminhou sozinha pela primeira vez, atravessou o quarto de uma ponta à outra. A minha filha caminhou sozinha e a cada passo tornou-se um bocadinho mais do mundo… um bocadinho menos minha.

Um bocadinho mais do mundo. Um bocadinho menos minha.

Estou tão feliz e tão assustada em partes iguais. O futuro sempre me causou ansiedade, mesmo sendo uma pessoa relativamente positiva, que acredita que tudo sempre correrá bem… mesmo quando não. Este blogue não é sobre política, mas ainda que não fale sobre isso, cada acto nosso tem de ser político, não existe outra forma, quando a nossa casa comum arde. À luz do que se vive estes dias nos EUA, não deixo de pensar que a minha filha caminha hoje para um mundo cujo futuro é assustador.

E eu não tenho outra hipótese se não arregaçar mangas e construir para ela um mundo melhor, e esse mundo começa para ela neste pedacinho de terra que pisa sorrindo.

 

Este leopardo, a que chamei “Tigre” a minha vida toda, foi-me oferecido pelo meu pai quando fiz 1 ano. Hoje é abraçado pela Matilde.

 

Depois dela.

Acordei com o gato Sebastião, mimado, a pedinchar mimo a horas indecentes da manhã. Levantei-me, espreitei a rua, estava escuro e frio, ainda tinha mais uma hora para dormir, voltei a deitar-me. Na cama, a Matilde já dera uma volta completa a dormir, assim que me deito, encaixa a cabeça debaixo do meu braço, o nariz quase toca a minha cintura. Há noites que se tem encaixado assim. Aos pés da cama dois gatos já ronronam. A gata aninha-se nas pernas do André, que esta noite foi delegado ao colchão no chão para dar espaço às acrobacias nocturnas da bébé.

Estico o meu braço, com a mão aconchego-lhe o fundo das costas, odeia ser tapada e geralmente acorda quando o faço, mas sei que se sente confortável quando a abraço assim.

Como era a vida antes dela chegar? Penso. Há dias em que sinto muitas saudades da Inês (das várias) que fui, dias em que questiono a decisão de querer ser mãe, principalmente nos dias em que maternar é demasiado doloroso (quando não?!). Quando o choro é dilacerante, quando as horas parecem não passar, quando todas as decisões parecem erradas.

Depois sinto o seu pequeno corpinho junto ao meu, o seu respirar, escuto o seu gargalhar, a forma como já responde ao que lhe pergunto, as relações que tece a seu redor, a forma como se move no mundo. De súbito, o passado já foi. Guardado num louceiro, à vista do recordar, mas longe o suficiente para dar espaço a este futuro que me entra de rompante peito adentro a cada despertar.

Vou levantar-me dentro de pouco tempo, iremos abrir juntas as janelas à manhã, dizer adeus aos autocarros amarelos que já passam lá em baixo e, com sorte, passará um comboio que levará com ele uma gargalhada da Matilde e um "não há" assim que a última carruagem desaparecer por detrás dos prédios.