TRITÃO


Quero-te assim.
Com as pernas que nunca tive
para te seguir
e todos os dedos que fui
amputando, do lado do coração,
em castigo por não te saber tocar. 

Assim, de cabeça finalmente perdida
para te explicar apenas
o essencial - 

não há palavras 
suficientes a este amor. 
E um poema, mesmo de pedra, 
também passa, a menos que 
te ganhe para sempre os olhos. 


Inês Dias, Da Capo,
Lisboa: Averno, 2014

O QUARTO

Quem te pôs a mão no ombro,
a faca que te atravessou o coração,
são feridas alheias, talvez algo que leste;
entretanto partiste

para lugares menos iluminados
e corações menos vulneráveis,
pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui
se já cá não estás.

A hora havia de chegar em que
nos perderíamos um do outro.
E acabaríamos necessariamente assim,
mortos inventariando mortos.

Morrer, porém, não é fácil,
ficam sombras nem sequer as nossas,
e a nossa voz fala-nos
numa língua estrangeira.

Apaga a luz e vira-te para o outro lado
e acorda amanhã como novo,
barba impecavelmente feita,
o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.

 

Manuel António Pina
Como se Desenha uma Casa,
Assírio & Alvim, 201
1