Aonde irei comigo? Onde me esconderei,
que já ninguém me veja e eu não veja ninguém?
A luz do dia assombra-me, pasma-me a das estrelas
e os olhares dos homens na alma me penetram
E é que o que dentro levo de mim, penso que ao rosto
me sai, qual sai do mar ao fim um corpo morto
Tomara que saísse!... Mas não, dentro te levo,
fantasma pavoroso dos meus remordimentos.
Rosalia de Castro
Se alguém me perguntar...
Se alguém me perguntar, hei-de dizer que sim, que foi
verdade - que não amei ninguém depois de ti nem
o meu corpo procurou nunca mais outro incêndio
que não fosse a memória de um instante junto
do teu corpo; e que deixei de ler quando partiste
por não suportar as palavras maiores longe da tua boca;
e que tranquei os livros na despensa e tranquei a despensa,
acreditando que, se não me alimentasse, acabaria
por sofrer de uma doença menor do que a saudade, mas
a que outros, pelo menos, não chamariam loucura.
Se alguém me perguntar, direi que foi assim, e não de
outra maneira, como alguns parecem supor - que permiti,
bem sei, que outros homens me amassem e me aquecessem
a cama, mas em troca lhes dei apenas um nome diferente
do que tinham e os vi partir desesperados a meio
da noite sem sentir maior dor que a de saber que, afinal,
também eles não existiam para além de ti; e que no dia
seguinte dava comigo a trautear sem querer essa canção
que amavas (como se ela, sim, se tivesse deitado
no meu ouvido), mas que a sua melodia, em vez
de me alegrar como antes, me escurecia mais a vida.
Se alguém me perguntar, nada desmentirei, nem negarei
que os frutos todos que me deram a provar na tua ausência
me pareceram demasiado azedos ao pé dos que explodiam
em sumo nos teus lábios; e que, por isso, nunca mais quis
um beijo de ninguém, nem sequer inocente, e não voltei
também, a aceitar as flores que me traziam por me lembrar
que, em mãos assim, tão grandes para o afecto, o seu
perfume anunciava invariavelmente a chegada do outono.
E contarei por fim, se alguém quiser saber, que o teu silêncio
foi de tal densidade, de tal espessura, que não consegui
escutar nenhuma das vozes que vieram depois de ti e, pior
do que isso, me esqueci com indiferença das mais antigas,
pelo que as minhas noites se tornaram uma tão longa
e solitária travessia que ainda esta manhã acordei ao lado
da tua sombra e respondi baixinho, mesmo sem ninguém
me perguntar, que há coisas que uma mala nunca leva.
Maria do Rosário Pedreira
V
Só mais um dia,
um dia luminoso e barulhento
por mim a dentro,
um dia bastaria,
em prosa que fosse.
Mas dá-me para a melancolia,
para a limpeza, para a harmonia,
impacientam-me as migalhas
de pão na mesa, as falhas
da pintura do tecto,
as vozes das visitas, despropositadas,
sinto-me sujo como um objecto,
desapegado, desarrumado.
Trocaria bem esse dia
por um pouco de arrumação
- no quarto e no coração.
Terça-feira, 10 de Março
Manuel António Pina
Sines, 13 de Novembro de 2014
há sempre uma certa nostalgia que chega com a chuva. um não-sei-quê que se sente no peito e que nos aperta a garganta. há que tempos que não me dava para escrever nada, o diário amarelece num vazio teimoso. há coisas que nem em palavras se conseguem traduzir. há dias em que acordo de manhã e me sinto capaz de qualquer coisa "hoje, se quisesse, voava", mas depois desperto para a realidade que me rodeia: uma terra que não é a minha, mas que agora o é, embora eu o esqueça demasiadas vezes, a realidade de não ter um emprego nem perspectivas, a realidade de uma nova vida para a qual não me preparei. Procuro fazer coisas que nunca fiz, aprender coisas sobre as quais não conheço nada. Arregaçar as mangas e por mãos à obra. Agora quero aprender mais sobre bricolage, hoje quero ser carpinteira, amanhã posso ser outra coisa? apetece-me sujar as mãos, criar, ver crescer... como se responde à pergunta: "o que gostavas de fazer?", quando se quer tanta coisa? como se responde à pergunta: "o que gostavas de fazer?" quando nos estamos constantemente a travar, com ideias pré-concebidas como o "não vai funcionar", "não vou conseguir", "não me vai dar dinheiro". é que no fim, há contas para pagar, uma casa para sustentar, dois felinos e uma família para criar. sinto-me tão perdida.