Um número elevado

Quatro biliões de pessoas nesta terra,
e a minha imaginação é como sempre foi.
Não se dá bem com números elevados,
É sempre ainda um pormenor que a comove.
Como luz de lanterna, esvoaça no escuro,
iluminando apenas os rostos mais à mão,
enquanto os outros vão seguindo às cegas,
na pena incontinente, o impensar.
Nem o próprio Dante, porém, o impediria.
Quanto mais quando se o não é.
Nem que todas as musas me acudissem.

Non omnis moriar - mágua permatura.
Será que todavia vivo inteira e isto basta?
Nunca bastou e agora muito menos.
É rejeitando que escolho, não há outra maneira,
mas é mais numeroso o que rejeito,
mais denso, mais obsessivo do que nunca.
Pelo preço de perdas incontáveis - um minúsculo poema, um suspiro. 
Ao retumbante apelo respondo sussurrando.
Quanto em mim silêncio não direi.
Rato em sopé de maternal montanha.
A vida dura três marcas de garras na areia. 

Não são sequer, como deviam, humanos, os meus sonhos.
Há neles mais solidão que multidões e gritos.
Aparece, às vezes, por momentos, alguém há muito morto.
É uma simples mão que abre a porta.
As respostas de um eco cobrem a casa vazia.
Eu precipito-me correndo do limiar a uma planura
de silêncio, como sem dono, anacrónica já.

Ignoro donde me vem este espaço ainda em mim.

 

 

Wisława Szymborska,
Paisagem com Grão de Areia
Relógio D'Águua

Princípio e fim

Pintar a escuridão a partir da escuridão,
tal como Caravaggio.

Assim, 
a habitação desnuda
                                  e o silêncio
que roda lentamente quando fechas a torneira. 

Assim
         sais do banho:
o teu corpo de mulher parece chuva. 

Não se pode gostar de toda a gente
                                                           - escreveu-o Robert Lowell -,
o coração não chega para tanto.

E falar de ti,
                   no fundo,
é também uma forma de egoísmo.

Pintar a escuridão
                             a partir da escuridão que nos enlaça
como o princípio e o final de um círculo.

Não o quebres e volta para junto de mim,
devagar,
             mais devagar,

até saber como termina tudo.

 

 

Josep M. Rodríguez,
A Caixa Negra
Averno

dos dias curtos e das noites chuvosas.

chamem-me o que quiserem
(sejam meiguinhos)
mas adoro estes dias de outono. há qualquer coisa de mágico no cair das folhas, na chuva que bate na janela, no cheiro da terra molhada. claro que não tem piada nenhuma enlear as malas no guarda-chuva enquanto tentamos atrapalhadamente entrar no carro. chegar ao trabalho ensopados que nem pintos, amaldiçoar as biqueiras dos prédios. mas mesmo assim, não há qualquer coisa de mágico nesta altura do ano? qual pessoas mais leves e quentes ao sabor do verão, o corpo quer-se é tapadinho com cachecóis que parecem mantinhas da avó. um chocolate quente ao final da tarde, o cheiro da sopa a ferver na caçarola, um livro de poesia e o sofá a chamar por nós. o amor quer-se mais no outono.


e não vou falar nas castanhas porque não sou a maior fã, mas o frio no nariz e o cheirinho das castanhas assadas nas ruas da baixa de Lisboa são das memórias mais bonitas que tenho guardadas.