Quero-te assim.
Com as pernas que nunca tive
para te seguir
e todos os dedos que fui
amputando, do lado do coração,
em castigo por não te saber tocar.
Assim, de cabeça finalmente perdida
para te explicar apenas
o essencial -
não há palavras
suficientes a este amor.
E um poema, mesmo de pedra,
também passa, a menos que
te ganhe para sempre os olhos.
Inês Dias, Da Capo,
Lisboa: Averno, 2014
O QUARTO
Quem te pôs a mão no ombro,
a faca que te atravessou o coração,
são feridas alheias, talvez algo que leste;
entretanto partiste
para lugares menos iluminados
e corações menos vulneráveis,
pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui
se já cá não estás.
A hora havia de chegar em que
nos perderíamos um do outro.
E acabaríamos necessariamente assim,
mortos inventariando mortos.
Morrer, porém, não é fácil,
ficam sombras nem sequer as nossas,
e a nossa voz fala-nos
numa língua estrangeira.
Apaga a luz e vira-te para o outro lado
e acorda amanhã como novo,
barba impecavelmente feita,
o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.
Manuel António Pina
Como se Desenha uma Casa,
Assírio & Alvim, 2011
Sines, 23 de Novembro de 2014
Quantas vidas cabem numa só?
NEM ÀS ESCURAS!
Aonde irei comigo? Onde me esconderei,
que já ninguém me veja e eu não veja ninguém?
A luz do dia assombra-me, pasma-me a das estrelas
e os olhares dos homens na alma me penetram
E é que o que dentro levo de mim, penso que ao rosto
me sai, qual sai do mar ao fim um corpo morto
Tomara que saísse!... Mas não, dentro te levo,
fantasma pavoroso dos meus remordimentos.
Rosalia de Castro