Estava capaz de ter uma conversa contigo

Estava capaz de fazer chá e tomar vitamina C.
Apetece-te uma chávena de chá?
...
Estava capaz de ficar muito sossegadinho a um canto, parando de inventar motivos
para andar de um lado para outro.

Estava capaz de ter uma conversa contigo.
Apetece-te uma conversa?

Sam Shepard


Não podia ter sido mais apropriado, cruzar o Sam Shepard com o meu sonho de ti. Voltar em turbilhão a um passado que já me parece inventado, como se tudo, afinal, não tivesse sido mais do que ilusão.
'Estava capaz de ter uma conversa contigo', mas repito-o a tinta, onde não me podes ouvir... ou onde (ainda) existo. 


 

Quem vive para o amor está lixado


Quem vive para o amor está lixado
não tarda, que o amor é um amplo espaço
vazio sem cor nem forma e um silêncio
tumular por dentro. Mau, muito mau
para se levar alguém. Mas tu vieste
e de imediato tudo fôra já decidido
como quando alguém nasce e olha em torno
– pouco importa se estranha ou não a paisagem.
Tínhamos o nosso espaço e tínhamo-nos
a nós, um ao outro por natural companhia
era o amor, tudo indicava. Podia-se morrer
disso. E tínhamos o tempo todo para ver.


Rui Caeiro,
O Quarto Azul e Outros Poemas
Letra Livre
2011 

Sobre a Infância*

são muitos os sentimentos que me atravessam o coração quando me falas em infância. atravessam-no como quem faz uma ponte entre o hoje e o ontem. sempre vivi mais o passado que o presente e ainda hoje, à luz destes meus (quase) 27 anos, é erro recorrente. 
tenho memórias guardadas em cantinhos especiais do coração, escondidas por portas secretas, - lembras-te? como aquelas com que sonhamos - sim, com esta idade, porque a criança que fomos ainda o é.
avanço devagarinho, voltada para dentro, assim como quem se vira do avesso, devagarinho, com esta calma que só os crescidos conseguem ter quando se trata de coisas valiosas. caminho por entre as memórias do tempo que já foi, com medo de lhes tocar, com medo que se desfaçam em poeira, afasto uma cortina de tule, branco, e ouço a madeira ranger sob os meus passos, páro, à minha frente, numa parede nua, passam filmes da minha infância. consigo vê-la de vestidinho vermelho com bolsinhos de corda, bege. tem uma malinha a condizer e os sapatos, novos, beijados de véspera. ela ainda não o sabe, mas é o dia mais importante da sua vida. estamos em 1988 e ela também ignora esse facto, tem 2 anos e 8 meses e parece uma menina crescida. lá dentro está um bébé, mas ainda não a deixam entrar, espera nas escadas, daquela maternidade velhinha. não sei se é dia 23, se 24, sei que lá dentro está o meu irmão, embora só a consiga ver a ela. lá dentro estão os meus pais, aqui está a minha vida. aqui começou a minha vida. 

*texto a pedido de um amigo