Depois dela.

Acordei com o gato Sebastião, mimado, a pedinchar mimo a horas indecentes da manhã. Levantei-me, espreitei a rua, estava escuro e frio, ainda tinha mais uma hora para dormir, voltei a deitar-me. Na cama, a Matilde já dera uma volta completa a dormir, assim que me deito, encaixa a cabeça debaixo do meu braço, o nariz quase toca a minha cintura. Há noites que se tem encaixado assim. Aos pés da cama dois gatos já ronronam. A gata aninha-se nas pernas do André, que esta noite foi delegado ao colchão no chão para dar espaço às acrobacias nocturnas da bébé.

Estico o meu braço, com a mão aconchego-lhe o fundo das costas, odeia ser tapada e geralmente acorda quando o faço, mas sei que se sente confortável quando a abraço assim.

Como era a vida antes dela chegar? Penso. Há dias em que sinto muitas saudades da Inês (das várias) que fui, dias em que questiono a decisão de querer ser mãe, principalmente nos dias em que maternar é demasiado doloroso (quando não?!). Quando o choro é dilacerante, quando as horas parecem não passar, quando todas as decisões parecem erradas.

Depois sinto o seu pequeno corpinho junto ao meu, o seu respirar, escuto o seu gargalhar, a forma como já responde ao que lhe pergunto, as relações que tece a seu redor, a forma como se move no mundo. De súbito, o passado já foi. Guardado num louceiro, à vista do recordar, mas longe o suficiente para dar espaço a este futuro que me entra de rompante peito adentro a cada despertar.

Vou levantar-me dentro de pouco tempo, iremos abrir juntas as janelas à manhã, dizer adeus aos autocarros amarelos que já passam lá em baixo e, com sorte, passará um comboio que levará com ele uma gargalhada da Matilde e um "não há" assim que a última carruagem desaparecer por detrás dos prédios.

 
 

A dança ou o princípio da paixão.

"Cross, volta da senhora, mão na cintura."

2 beijos, no rosto, à despedida.
A mão que desliza do antebraço ao cotovelo, do cotovelo ao pulso e se demora nas pontas dos dedos.

"Mais perto."

O tempo suspenso que antecipa um beijo.

"Mais perto."

O toque, o arrepio, a inquietação, o calor. A música que apenas dois corpos escutam.

A paixão é um sítio de onde se regressa escancarado e desfeito. O amor é outra coisa.
A paixão rasga-nos a saia. Apaga as luzes. Rouba-nos pela cintura, esquece a comida ao lume. E vicia. A paixão vicia.
A paixão devia vir com termo de responsabilidade a assinar por ambas as partes.

 

Frederic Forest, Lovers - Etude 10

 

Auguros.

Ontem deitei-me tarde, não tinha sono, deitei-me no chão do sótão com um livro e fiquei a olhar o tecto. Esperava a chuva que haviam prometido. Há muito tempo que não me sentia assim, nesta ansiedade de quem tem visita de estudo amanhã, de quem vai quebrar a rotina para ver coisas incríveis. Eu queria ver a chuva. Quando os olhos não aguentaram mais, adormeci.

Hoje acordei com o som da chuva nos telhados... saltei da cama e, entre os afazeres da manhã, preparei um chá quentinho - não me lembro da última vez que preparei um chá, os dias frios já estão tão longe. Deixei-me ficar assim, junto à janela, com uma chávena de chá nas mãos, a ver a chuva a cair e o dia a acontecer alheado a ela.

Lá em baixo, o rio, que já mal se avistava da minha janela, corre apressado. Espero que não vá atrasado e que volte a tempo do jantar. Espero que fique por cá mais uns tempos, tenho saudades de o ver correr com vagar.

Quanto à chuva, que fique o tempo necessário para que amanheçamos todos mais felizes. Que traga auguro de abundância e bons presságios.