Três coisas que me resgataram a alma em Maio

Maio foi mês de contrastes. Teceu-se de dias pesados e cinzentos, de desafios, de gestos que se repetem até ao cansaço, de dias em que o corpo vai… mas a alma fica para trás. Mas também se fez dos gestos pequenos e ordinários que, de tão repetidos, se cai no erro de lhes retirar valor, de notícias que nos trouxeram leveza e de fins de semana de sol, em família.

Por fim, entre o correr dos dias e o tentar abrandar para ver o que está além, houve três coisas que me resgataram. Três encontros com a beleza — da imagem, da palavra, do som — que me devolveram àquilo que é essencial.

1. A beleza da imagem: "Quando a Vida te Dá Tangerinas" (Netflix, 2025)

Seguramente a série mais bonita que vi nos últimos anos. De uma beleza que não grita, aquela beleza que nasce do real, do imperfeito, do importante. Escrita pela enigmática Lim Sang-choon, esta história que se vive na ilha de Jeju, de gente comum, de afectos quase invisíveis mas intensamente presentes, resgatou-me dos dias cinzentos de sobrevivência e devolveu-me o fôlego.

Pela primeira vez, em muito tempo, voltei a acreditar num futuro bonito. Foi como se alguém me tivesse posto uma mão sobre o ombro e sussurrado: “Continua. Ainda há calor, ainda há beleza, a vida não está no extraordinário. Está aqui. O sangue pulsa, e a vida é agora, e agora, e agora, num constante reinventar, a cada estação, sem perder a fé, o amor, e o quente de quem segura a nossa mão dentro de um bolso.”

2. A beleza da palavra: "O Livro Branco", de Han Kang (Dom Quixote, 2019)

Na sexta-feira passada, fiz algo que há muito não fazia: resgatei tempo para mim, não para limpar a casa, não para resolver recados, para respirar — para cuidar da alma. Ia ver um concerto e, como cheguei duas horas antes para levantar o bilhete, entrei na Bertrand. E este livro escolheu-me, como acontece sempre com os livros que nos transformam.

Sentei-me numa esplanada, abri a primeira página… e quando dei por mim, tinha passado uma hora e meia. Quando levantei os olhos, o céu parecia mais azul, as plantas mais verdes, o mundo mais vivo.

Han Kang escreve com uma delicadeza cortante. Cada fragmento é uma oferenda à ausência, ao luto, à memória. Um livro sobre o que não chegou a ser, uma prece, uma forma de dar corpo à ausência. É um livro para ser lido com tempo, com silêncio por dentro.

Terminei-o no dia seguinte, e tenho-o junto a mim desde então, porque ainda não descobri como sair dele. Ficou-me na pele.

3. O concerto “Música Sem Tempo - Instrumentos Tradicionais Portugueses” — Projecto Aduf&lectrónica - WNMD 2025 - Concerto N.º 1

Fui sozinha ao concerto de abertura do festival World New Music Days. O projecto Aduf&lectrónica, de Rui Silva e Bruno Gabirro. Com a presença das vozes imensas das cantadeiras Joana Negrão e Ana Paula Rodrigues. Foi bonito, tão bonito. É difícil explicar o que se sente quando o som ancestral do adufe se funde com paisagens electrónicas — não numa tentativa de apagamento, mas num reencontro. Ali, a tradição não é coisa antiga: é semente. É raiz a reinventar-se.

Na espera para entrar, conheci um compositor da Nova Zelândia. Partilhámos palavras sobre as mulheres do nosso país, sobre o poder do adufe e o valor das canções do povo. Falámos da urgência de não deixar morrer essas raízes — e da alegria de vê-las renascer de outras formas.

Foi um momento profundamente bonito, emotivo, de muito orgulho e sobretudo de sentido de pertença, que nos falta tanto nos dias que correm. A música do povo, com toda a sua força, foi tocada para um mundo inteiro naquela sala.

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Três encontros, três caminhos de volta a nós, ao que é importante, ao que nos resgata. A reflexão de que a vida é mais simples do que cremos. Que somos muitos, muitos mais, a viver nesta angústia dos dias que parecem não ter horas suficientes e que talvez seja tempo de, por fim, abrandarmos e olharmos para o que é, afinal, importante.

A vida é agora, e agora, e agora.

(re)imaginar o Natal.

E se em vez da correria aos shoppings e das listas intermináveis de tarefas pudéssemos apenas voltar a ser crianças? 

A senhora atrás de mim exasperasse, espreitando-me pelo ombro para ver a fila que se estende até à caixa. O senhor a meu lado, na outra fila, acena-me com os ombros, como que constatando que aqui estamos, outra vez, para mais um ano, respondo-lhe com um sorriso sem dentes, desviando o olhar.  Do outro lado da loja,  uma filha grunhe para a mãe “traz qualquer coisa, se não gostar que troque” e, ao fundo, junto aos jogos, uma senhora ajeita os óculos tentando ler o bilhete que o neto lhe escrevera o domingo passado - “P - S - 5, o que é que isto quer dizer?!” 

Olho para as minhas mãos e começo a questionar-me se será pouco. “Será que vai gostar? Foi tão baratinho. Será que vai levar a mal? Será que só o livro chega? Secalhar faço um kit de leitura e junto-lhe uma caneca e um chocolate quente em pó….” Ele segura-me no braço e sorri, “Estás feliz com o que escolheste?” Pergunta-me.

“Sim… Não… Não sei…” saio da fila e pouso as coisas. Respiro fundo. “Como é que chegámos a isto?”

“Se não concordas, porque perpetuas? Porque é que não fazes diferente?”


Todos os anos penso a mesma coisa “quando é que o Natal passou a girar em torno do consumismo? Quando é que o Natal passou a ser corridas a lojas, presentes com vales de troca, e família que se encontra por obrigação? E será que pode ser diferente? Como é que se muda isto sem ofender alguém?” e todos os anos, por esta altura, tiro da minha estante o livro “The Everyday Alchemist’s Festive Season Reimagined” da Pia Jane Bijkerk, minha musa, e sonho. 

A Pia faz-me acreditar que sim, que é possível (re)imaginar esta época, é possível resgatar o Natal. É possível viver cada instante em calma e presença.

Acreditas comigo? 

Acendo as luzes de Natal logo pela manhã, todas, e preparo o meu pequeno almoço, faço duas torradas e barro com muita manteiga (como faz o meu pai, desde que eu era criança) e doce de tomate caseiro, da minha mãe. Aqueço um café com leite no púcaro e encho uma chávena, deito um bocadinho de leite à parte, e faço espuma (inspirada pela minha Joana) para colocar em cima do café com leite. Agarro um pedaço de chocolate e esfarelo por cima, com uma pitada de canela. Sento-me à mesa com o livro da Pia, agarro a chávena com as duas mãos e levo-a à boca. Com um grande bigode de leite, sorrio. 

Caramba, é mesmo possível (re)imaginar o Natal, a tarefa soa impossível mas é mais simples do que parece: chama a criança que és, ela sabe o que fazer. A minha está em pulguinhas porque adora chocolate, luzes brilhantes e dias de chuva na janela. E a tua? 

dos "isolados".

'Quanto a mim, em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abrimos, nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir, apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os «isolados» que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.'
 

Paris, 21 Janeiro 1913

Cartas a Fernando Pessoa,
Mário de Sá-Carneiro

star stuff.

You’re an interesting species. An interesting mix. You’re capable of such beautiful dreams, and such horrible nightmares. You feel so lost, so cut off, so alone, only you’re not. See, in all our searching, the only thing we’ve found that makes the emptiness bearable, is each other.
— Carl Sagan