Os melhores anos da minha vida

Os melhores anos da minha vida
passaram comigo ausente, passaram
numa corrente subterrânea.
Não me apercebi de nada, distraído
com a queda das folhas,
a densa mistura de pão e desordem. 

Estava tudo em aberto, mas eu não sabia
senão de pequenas querelas,
e tímidos passos à toa, sempre à espera
de não ter futuro. Sentado, como um pobre,
sobre o poço de petróleo,
eu media com tesouras as semanas, 
misturava-me com livros, ansiava
pelo dia em que deixasse de sangrar. 

Os melhores anos da minha vida troquei-os
por isto. 

 

José Miguel Silva,
"Vista para um pátio" seguido de "Desordem"
Relógio D'Água

[Escrito de memória]

1. Um pequeno depósito de incredulidade
no fundo dos teus olhos.

2. Um breve estremecimento no movimento do coração (do meu coração).

3. A impressão de alguém olhando-
-te atrás de ti.

4. Uma voz familiar
num sítio cheio de gente
(que só tu ouves dentro de ti).

5. Um súbito silêncio entre as
sílabas de certas palavras
que fica depois a pairar perto dos lábios.

6. A ignorância de alguma coisa
que ainda não sabes que não sabes. 

7. Uma palavra só, aguardando,
uma palavra que basta dizer ou não dizer,
abrindo caminho entre ser e possibilidade.

8. O que não sou capaz de dizer dizendo-me.

9. Eu (um lugar vazio) para sempre; tu para sempre.

10. Outras duas pessoas
de que outras duas pessoas se lembram.

11. Esse país estrangeiro, o tempo. 

 

 

Manuel António Pina,
TODAS AS PALAVRAS poesia reunida
Assírio & Alvim

dos dias curtos e das noites chuvosas.

chamem-me o que quiserem
(sejam meiguinhos)
mas adoro estes dias de outono. há qualquer coisa de mágico no cair das folhas, na chuva que bate na janela, no cheiro da terra molhada. claro que não tem piada nenhuma enlear as malas no guarda-chuva enquanto tentamos atrapalhadamente entrar no carro. chegar ao trabalho ensopados que nem pintos, amaldiçoar as biqueiras dos prédios. mas mesmo assim, não há qualquer coisa de mágico nesta altura do ano? qual pessoas mais leves e quentes ao sabor do verão, o corpo quer-se é tapadinho com cachecóis que parecem mantinhas da avó. um chocolate quente ao final da tarde, o cheiro da sopa a ferver na caçarola, um livro de poesia e o sofá a chamar por nós. o amor quer-se mais no outono.


e não vou falar nas castanhas porque não sou a maior fã, mas o frio no nariz e o cheirinho das castanhas assadas nas ruas da baixa de Lisboa são das memórias mais bonitas que tenho guardadas.