De súbito extinguiu-se qualquer coisa,
soltou-se qualquer peça de uma máquina incompreensível
de que dependia, afinal, a minha vida;
tornou-se tudo demasiadamente literal,
até eu estar ali, sem compreender;
e até eu não compreender parecia
algo inteiramente incompreensível;
o mundo, que via pela primeira vez,
via-o através de uns olhos que não me pertenciam,
que não pertenciam, porque eu próprio era
um acontecimento incompreensível acontecendo,
algo que me acontecia não sabia a quem;
o comboio afastava-se levando-te
para fora de mim como alguém sonhando,
e eu e tudo o que de mim sabia desaparecera
e ficara um sítio vazio
onde as últimas horas da tarde
como aves extenuadas pousavam.
Manuel António Pina
TODAS AS PALAVRAS poesia reunida
Assírio & Alvim
Dona Júlia.
“Uma borboleta cor de barro decide arriscar
e tremula entre os espinhos da buganvília,
sai por cima. Nada acontece, nada de mais,
e a vida, a luta, continua. Tempo passa.”
José Miguel Silva
Serém, 24 de Março
averno 042, 2011
A Livraria já tivera dias mais azuis, agora era apenas um raio de sol que se mostrava timidamente por entre as nuvens negras dos dias sempre iguais.
Certo dia, enquanto reorganizava os pedidos de cliente, apercebera-se de um molho de livros que pareciam esquecidos no meio das novidades editoriais. Estranhou que estivessem embrulhados em papel, agora amarelecido, e retirou-os do fundo do armário. O pacote tinha um nome escrito a lápis, um número de contacto meio apagado e a data da reserva.
“Janeiro de 2012?!?! Mas que livros são esses?” espantara-se o Livreiro.
I. estava cada vez mais curiosa, - “Posso abrir?”
“Abre e liga à cliente, nos tempos que correm não nos podemos dar ao luxo de perder vendas.”
No pacote, um livro de poesia de José Miguel Silva, “O Lago” de Ana Teresa Pereira, e um “Record”.
“Estou sim? Dª Júlia Vilar? Peço imensa desculpa por estar a incomodá-la, estou a ligar-lhe da Livraria, temos aqui um pacote de livros reservado em seu nome e como já passou tanto tempo, gostaríamos de saber se ainda estaria interessada…”
Júlia parecia surpresa, naturalmente já não se recordava mas quis saber que livros eram.
Li-lhe os títulos e mencionei, em tom de brincadeira, que também lá tinha um jornal, de há dez anos atrás, com notícias desportivas fresquinhas!
Ao contrário do que poderia supor, o riso na voz que esperava ouvir do outro lado da linha, dava lugar a um silêncio sufocado, tão pesado, que a fez desejar voltar atrás apenas o tempo suficiente para apagar a sua última frase.
Entre soluços, I conseguiu distinguir um “minha querida, minha querida….” num sussurro que parecia alternar entre o riso e o choro.
“Minha querida, a data do jornal… pode dizer-ma?”
“Claro, claro… 28 de Janeiro de 2012”
Sentiu que as lágrimas lhe caíam pelo rosto, imaginou-a junto à mesinha do telefone, de frente para o espelho, as flores murchas sobre o aparador.
“Eu ia levantá-lo nessa mesma manhã. Saí cedo, como sempre fiz, fui ao mercado e comprei as flores para a minha entrada. Uma casa com flores tem vida por si só, não concorda? - Aos sábados tínhamos esta rotina, ele ficava em casa a tratar do jardim, - havia de gostar dos meus rododendros!!! - e eu saía cedo, ia ao mercado, passava pela Livraria, trazia comigo as flores e a poesia. E o jornal. Depois do almoço sentávamo-nos no alpendre com um chávena de chá. Eu lia-lhe versos que ele não entendia, mas sorria, e isso era-me suficiente. Ele lia o seu jornal e as tardes eram calmas…
Foi a última manhã que passámos juntos, o meu marido deixou-nos nesse dia.
When it happens,
with my eyes closed. When I trip
over your clothes on the floor
I will lay there as though that is where
I will sleep. I will talk to the couch cushions
as though they are you. I will drive you
to work every morning even though you are not
in the car. I will call random numbers
and ask strangers how their days were.
I will still make too much
food for dinner. I will still try to fall asleep
on my back. When anyone asks
how you are, what you’re doing,
where you’ve been for the past few weeks,
I will lie.
neil hilborn
Sines, 04 de Novembro de 2013
o relógio a apressar o tempo.
os dias que se atropelam
iguais
e mais 10. ou menos. ao menos
finjo.
sempre foi para sempre.
sim, «saquei este poster.»
é a 16, do issues.
são os avessos:
sorrio.