Orgasmo Místico

Tanto me levas contigo que quase não me basto
Comigo.
Como Sá de Miranda
Penso: sou um rural das máquinas,
Sem aves, sem as suas mudanças no estio
Das suas quedas calmas.
O meu roteiro cresce a gasolina, a poeira, a mofo
E a palavras caídas em desgraça.

 Ou em desavença.
Na perseverança civil, na guerra da moral,
Carregas-me a cabeça com o corpo atolado em visões urbanas,
Transportas os sentimentos que me restam
E não sabes sequer onde me levas
O terceiro idoso coração.

 Quando se fica assim, bêbado de velho,
O amor não tem locomoção possível, não ata nem desata,
Não pega.
E a alma fica grata, gata de colo, e atravessa o caminho,
Ganha ares de filósofa,
Ornamenta as frases, consegue mesmo alcançar um orgasmo
Místico,
E duvida se deus pode escrever-se
Ainda em caixa alta


Armando Silva Carvalho
O Amante Japonês,
Assírio & Alvim

«é subitamente um grito, um grito apertado nos dentes...»

Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma 
à roda do corpo que desperta, 
sílaba espessa, beijo acumulado, 
amanhecer de pássaros no sangue. 

É subitamente um grito, 
um grito apertado nos dentes, 
galope de cavalos num horizonte 
onde o mar é diurno e sem palavras. 

Falei de tudo quanto amei. 
De coisas que te dou 
para que tu as ames comigo: 
a juventude, o vento e as areias. 


Eugénio de Andrade 

Neste preciso tempo, neste preciso lugar


No princípio era o Verbo
(e os açúcares
e os aminoácidos).
Depois foi o que se sabe.
Agora estou debruçado
da varanda de um 3.º andar
e todo o Passado
vem exactamente desaguar
neste preciso tempo, neste preciso lugar,
no meu preciso modo e no meu preciso estado!

Todavia em vez de metafísica
ou de biologia
dá-me para a mais inespecífica
forma de melancolia:
poesia nem por isso lírica
nem por isso provavelmente poesia.
Pois que faria eu com tanto Passado
senão passar-lhe ao lado,
deitando-lhe o enviesado
olhar da ironia?

Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?

Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Lá em baixo, na rua, passa para sempre
gente indefinidamente presente,
entrando na minha vida
por uma porta de saída
que já dá para a memória.
Também eu (isto) não tenho história
senão a de uma ausência
entre indiferença e indiferença.

Manuel António Pina
Todas as Palavras, Poesia Reunida
Assírio & Alvim 


que se sublinhe em jeito de "note to self", para todas as vezes que o Passado irrompe pelas janelas do Presente adentro.