Parece que Lucrécio dizia...


o olhar saboreia o morno vinho
envolve teus cabelos, bebe no teu rosto, adormece
dormente onde tu e as aves vêm pernoitar
aqui sentado, neste restaurante de praia
mosquitos, aves reclinadas, talvez palmeiras envelhecidas como eu
a paisagem é um plano a preto e branco de filme neo-realista
pregos ferrugentos, madeiras soltas, a boca rente às areias
resíduos calcários de passos pelas ervas altas
águias, soberbas e lentas.

(o puto move-se, apertado nas calças finas, como se tivesse o corpo e os movimentos forrados por uma película em matéria finíssima, transparente, deixando contudo aperceber as modulações de seu corpo-rebuçado)

bebo, apetece-me gritar no horizonte do meu filme mudo
embriagado e desfeito, olho
aves irradiando luz, cordas enceradas pela transpiração das mãos
as vozes dos homens numa rebentação distante da ressaca
as vozes dos homens puxando os barcos: só o mar das outras terras é que é belo

em grande plano
ocupando-me por completo o écran desfocado dos olhos
o algodão pobre de tua camisa, as unhas roídas
os dedos duros engordurados, o buço macio
despontando num desafio que eu aceito

espero que a noite venha com seus ínfimos sóis, e solte transparentes borboletas cobertas de mel
parece que só assim, dizia Lucrécio
tua imagem permanecerá perto de mim, e a doçura do teu nome insinuar-se-á
gota a gota, junto ao coração

Al Berto
Poemas com Cinema,
Assírio & Alvim 

'faz de mim o que quiseres, dobra o cabo dos trabalhos e atira-te de cabeça'


Eras mesmo a fonte de tudo, pelo menos
naquele dia a que chamámos perfeito.
Os dias tinham-se entranhado nos dias,
a tal ponto que a vida era só dias, dias
a seguir uns aos outros. Apenas dias.
De olhos vendados e sem bater numa única
parede, pegados a isto, ao cheiro reconhecido
só quando um dos corpos se afasta.
Sente-se a falta, eu farejo como um cão
e depois sento-me triste a um canto
com um livro na mão. Mas naquele dia
que ambos classificámos de perfeito
eu pude ver a vida ali desdobrada em duas
à minha frente. E a tua inocência poderosa
a dizer-me uma vez sem exemplo faz
de mim o que quiseres, dobra o cabo
dos trabalhos e atira-te de cabeça.

Helder Moura Pereira
via blogue poesia


I'm so glad we did it... 

Viola Partida . 5


Estendias-me a viola partida, caixa de ressonância numa mão, braço solto na outra, as duas metades presas por cordas emaranhadas (a imagem era a de um corpo decepado, fios inúteis a ligarem o que já não se pertencia, entendo-te, custava ver). Desolado perguntavas-me se tinha arranjo, enquanto repetias que preferias ter partido um braço (e não era a viola, via-se nos teus olhos, era o amor, um laço que inteiro se tinha desfeito, uma crença que perfeita deixara de ser). Disse-te que sim, havia de ter arranjo, e ainda bem que não tinhas partido o braço, precisavas mais dele que da viola, pois a música estava em ti. E vi que ficaste menos triste. E vi sorrir nos teus olhos a alegria de haver uma luz. A mim salvaste-me o dia (nesse teu olhar que sorria fez-se um milagre de um sentido que dentro se procurava vazio). A ti, espero ter podido dar-te as palavras de sentires que apenas a viola se partira, não a música.


Jorge Roque
Canção da Vida,
AVERNO 047 

Tinho e André, a eles, que são feitos de música. 

O meu mundo tem estado à tua espera.


O meu mundo tem estado à tua espera; mas 
não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa,
nem retratos escondidos no fundo das gavetas. Sei

que um poema se escreveria entre nós dois; mas
não comprei o vinho, não mudei os lençóis,
não perfumei o decote do vestido.

Se ouço falar de ti, comove-me o teu nome
(mas nem pensar em suspirá-lo ao teu ouvido);
se me dizem que vens, o corpo é uma fogueira -
estalam-me brasas no peito, desvairadas, e respiro
com a violência de um incêndio; mas parto
antes de saber como seria. Não me perguntes

porque se mata o sol na lâmina dos dias
e o meu mundo continua à tua espera:
houve sempre coisas de esguelha nas paisagens
e amores imperfeitos - Deus tem as mãos grandes.


Maria do Rosário Pedreira