"já não há nada que nos peça água."


‎Houve um tempo em que, nos amores e nas paixões, se falhava de forma espectacular. Com baba e ranho. Dava-se tudo. Saíamos rasgados de pele e coração. Valia sempre a pena, mesmo quando perdíamos o chão.

Os erros, as faltas, as vertigens, o pé à beira do abismo existiam para nos lembrarmos de que somos humanos. A regra era cair e levantar, prontos para outra depois de lutos intensos, sofridos, partilhados. Agora tudo isso existe sob a forma de prevenção. Para nos lembrarmos do que não devemos fazer, dos riscos que não devemos correr, contra o vírus da solidão.

Fomos ficando higienizados. Da alma à cama. Uma espécie de “se conduzir, não beba” para evitar os males do coração. Como se pudéssemos dizer “se amar, não se magoe”.

Com o passar dos anos, aprendemos a contornar os sintomas a bem da decência, da pose e da anestesia geral ou local, conforme as necessidades. O importante é não dar parte de fracos.
O ciúme é uma coisa moderna, para ser compreendida. A discussão acalorada está fora de moda.
A vingança é um prato que não se serve frio nem quente nas relações mais conceituadas. É coisa do povo, ementa de vidas de tasco, entre um tiro de caçadeira e um facalhão de meter respeito.

O civismo entrou definitivamente na nossa intimidade para amansar os corpos, os gestos, as palavras. A postura é um fato de pronto-a-vestir que usamos para entrar e sair das relações. Talvez até já nem se rasguem roupas quando chega a hora. O sentimento não ferve, a aprendizagem das loucuras que fizemos é renegada e a história do que fomos não tem disco duro porque a caixa de mensagens é mais prática e descartável. De resto, já não há cartas para guardar porque ninguém as escreve. Quem as leria, de resto, se tivessem mais de 140 caracteres?

Como num poema do Eugénio, já não há nada que nos peça água. E estamos como ela: insípidos, inodoros e incolores. Leves. Capazes de ir do tudo ou nada sem efusão de sangue. Deve andar a escapar-nos o momento em que deixamos de olhar a vida nos olhos e a desregrada infinidade de coisas que vinha junto com ela.

Miguel Carvalho 
in Revista Egoísta

André.


Amei-te muito, sim, amei-te desde o princípio do tempo, desde que o mundo começou a ser mundo: revelação total, febre secreta a iluminar o corpo, a abrir caminhos que mais ninguém conhecera antes de nós, a acender-te no sexo mais do que o sexo, a percorrer em ti, pela primeira vez, todos os corpos de todas as mulheres que desejara até esse momento. Todas as raparigas que nunca possuíra, todas subitamente concentradas em ti, nesse amor fora do tempo e do espaço, como se só na tua pele a minha fosse lume. Quando é assim, não vale a pena perguntar nada ou iludir o destino com as armadilhas da razão: estavas ali e tudo se explicava, numa lógica cega cuja certeza não admitia hesitações. Por isso nos pareceu tão natural esse amor infinitamente maior do que todos os pequenos sonhos que a sociedade nos ensina a cultivar, para que todos os afectos se meçam por uma escala humana. A nossa paixão não se comportava assim, sempre foi muito mais do que humana, fazia-nos atravessar o vazio do mundo como se cada um dos nossos passos pressentisse o abismo e ao mesmo tempo o ignorasse. Foi há sete anos que nos apaixonámos, unidos por um mistério sem medida real, fieis a essa voz omnisciente que nos falava, viciados num oxigénio que respirávamos um do outro para nos salvar a vida. Respiração boca a boca, ar incandescente. Como se fosse inesgotável e nos invadisse a boca, a garganta, os pulmões cheios de sol, nas madrugadas que passávamos dentro do carro, um com o outro e um no outro, cada noite mais perto do nosso infinito. Foi há sete anos, meu amor.

Fernando Pinto Amaral

via sketches for my sweetheart the drunk

"Tantas manhãs terrivelmente lentas antes de ti"


Levanta-te e amaldiçoa o tempo - 
amanhã tão depressa e quase nada
para ficarmos juntos até à escuridão.
Tantas manhãs terrivelmente lentas
antes de ti, tantas tardes de retratos

exaustos sobre as mesas, noites que
nunca abriam fendas para o sonho; e de
repente os dias a fugirem como água
de dentro de uma mão, amanhã tão

depressa. Não te conformes: amaldiçoa
o tempo. Se for preciso, grita com Deus -

a mim ouviu-me enquanto te esperava.

Maria do Rosário Pedreira  

ou como as horas se atropelam para chegar até ti.


PAUSA

Parecia-me que este dia
sem ti
devia ser inquieto,
escuro. Em vez disso está repleto
de uma estranha doçura, que aumenta
com o passar das horas –
quase como a terra
após um aguaceiro,
que fica sozinha no silêncio a beber
a água caída
e pouco a pouco
nas veias mais profundas se sente
penetrada.


A alegria que ontem foi angústia,
tempestade –
regressa agora em rápidas
golfadas ao coração,
como um mar amansado:
à luz suave do sol reaparecido brilham,
inocentes dádivas,
as conchas que a onda
deixou sobre a praia.
 
 
Antonia Pozzi
(trad. Inês Dias)
Morte de uma Estação,
Averno
 
 
via João César

os ponteiros moveram-se a custo pelas horas, as horas teimaram em não passar e os dias cresceram semanas... - “A alegria (...) regressa agora em rápidas golfadas ao coração," - amanhã.