Mímica

Pode a noite doer
se as mãos tocarem a sua própria pureza
e houver um ponto negro ao centro

Quando no pulso
parece crescer uma pequena solidão
como se o espaço se afastasse e de repente
um véu cobrisse
todas as memórias futuras

Pode a noite tremer assim
para que os muros se abram ao meio

Para que a transparência dos gestos
publique essa mímica oculta
antiga intimidade

imo,
Vasco Gato
quasi
2003 

...

abraço-te. como se ainda estivesses aqui. como se nunca tivesse sentido a tua falta. como se fosses de sempre. ou para sempre. qualquer coisa. abraço-te porque me faltas. porque me falta. porque o ar. 

 

porque o tempo.

 

 

 

porque te

 

quero. 

 

 

 

 

qualquer coisa assim.

(sábado)

a manhã ainda pode ser salva se o tempo
mudar ou o café forte quebrar o vidro entre o som
e o sentido destas frases que recito em jejum
de um jornal atrasado. dormi mais do que o habitual,
entre papéis e o som distante do telefone,
um despertador absorvido pelo sonho. ao acordar não
consegui ler nas folhas do chá de ontem, despejado frio
pela banca da cozinha, o que farei com os restos de liberdade
que me sobraram do dia anterior.
na infância ensinaram-me como é perigoso
acordar um sonâmbulo, lição que tenho
aplicado de forma exemplar em relação a mim próprio.
o equilíbrio entre os dias e as noites foi-se alterando
de modo progressivo. ouço ao longe,
pela janela aberta, os sons do
carnaval de notting hill, um sinal de que o
verão terminou. queimo os cravos da mão esquerda, a mão
cega que não tem recebido todo o prazer ou o
reconhecimento que merece. chove.
e é tudo, descrição sem análise, na luz filtrada
de um dia em que se morre mais lentamente que nos anteriores.
daqui a pouco sairemos para as ruas de comércio, cais
onde se vão saudar paquetes
que já partiram, nas tardes de sábado, para nos perdermos
entre o ruído e o excesso de informação que
caracterizam o século vinte e um, sem
que ninguém repare que saí à rua sem o desejo vestido.
a cidade deixou de ser um mapa e, passado um ano, leio o nome das ruas
como quem incendeia os barcos à chegada a terra
para não ter forma de regressar a casa."

Tiago Araújo

via Poems from the Portuguese, a seguir.