Tudo isto já foi demais para caber num corpo.

Tudo isto já beijou a dúvida na boca. Tudo isto já fingiu ter tempo para regressar. Tudo isto já supôs que agora seria diferente. Tudo isto já se empenhou em derrotar seis ou sete pessoas. Tudo isto já foi roupa a secar e a proximidade da noite. Tudo isto já encantou o estrangeiro. Tudo isto já se sentou à espera de ver. Tudo isto já rasgou o que não interessava e o que demais interessava. Tudo isto já despiu a vergonha. Tudo isto já foi de avião à sua lucidez futura. Tudo isto já enfrentou o desespero com duas moedas apenas. Tudo isto já se cansou de buscar modos de dizer. Tudo isto já foi mercúrio. Tudo isto já caiu a meio da noite sem que ninguém lhe tocasse. Tudo isto já deu o nome errado. Tudo isto já pediu para trocar tabaco. Tudo isto já se intrometeu. Tudo isto já foi demais para caber num corpo. Tudo isto já mordeu os lábios por lhe sobrar o desejo. Tudo isto já comentou as notícias terríveis a mais de cinco metros de distância. Tudo isto já presenciou a morte e o nascimento. Tudo isto já permitiu que entrasse. Tudo isto já sentiu os nervos como cordas. Tudo isto já deixou alguém adormecer. Tudo isto já inalou o ópio suave do reencontro. Tudo isto já percebeu que pode acontecer.

Vasco Gato

Estilo

 - Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida… compreende?… a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas? ou meses ou anos?

(…)

Herberto Helder
Os Passos em Volta,
Assírio & Alvim 2001

Por muito tempo achei que a ausência é falta.

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus
braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


Carlos Drummond de Andrade

Pedro, lembrando Inês

“Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: “Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios? “Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba.
 Como gosto,meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa.Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fundo do mundo que me deste."

Nuno Júdice