há um abraço apertado que nos arranca do chão. há uma mão que agarra a nossa e diz tudo sem dizer nada. há sorrisos magoados. depois há o que é e o que foi... e a linha tão ténue que o divide.
se um dia a juventude voltasse...
"se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida
sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor
depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo
mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição"
Al Berto
Rumor dos Fogos, 1983
O Medo,
Assírio Alvim
aprender a voar.
não pensei dar três passos, sem voltar dois atrás para agarrar a tua mão. "calma, filhota", ouço-te dizer, à noite, que é quando ainda te deixo existir. e achei que não sobreviveria sem o teu riso, as nossas gargalhadas, que o mundo que nos inventara, de onde não consigo sair, ruiria com a tua ausência. quero contar-te que dei cinco passos, que voltei atrás e já não estava lá a tua mão, que dei mais três com medo de cair por não estares lá para me apanhar. mas que mesmo sem ti, aprendi a voar.
se pudesses ver.
A meio da tarde o dia ainda não foi encetado,
parece barricar-se nas folhas moles
dalgum livro. Tu já sabes como eu gosto dos cafés
nas horas de pouco movimento. Os empregados
podem entregar-se a querelas ruidosas nessa altura
e os reformados na mesa do fundo vão dizer em voz alta
aquilo que pensam sobre o governo.
Ao princípio da noite é como ter sangue
nas mãos. Talvez o tempo ainda se componha, talvez possa
telefonar a um amigo. É certo que nas ruas se torna mais fácil
distrair o medo, há sempre espaço onde pousar
a cabeça. Mas em que me torno no quarto quando não estás
a olhar? O cheiro da comida flutua ainda pelos corredores,
sente-se o peso que dorme no escuro até às entranhas.
Se pudesses ver como isso às vezes me magoa.
"Winter Night"
Rui Pires Cabral