Fagulha

Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas 
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas 
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria 
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria 
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia 
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.



Ana Cristina César

 

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Partida

De súbito extinguiu-se qualquer coisa,
soltou-se qualquer peça de uma máquina incompreensível
de que dependia, afinal, a minha vida;
tornou-se tudo demasiadamente literal,
até eu estar ali, sem compreender;
e até eu não compreender parecia 
algo inteiramente incompreensível;
o mundo, que via pela primeira vez,
via-o através de uns olhos que não me pertenciam,
que não pertenciam, porque eu próprio era
um acontecimento incompreensível acontecendo,
algo que me acontecia não sabia a quem;
o comboio afastava-se levando-te
para fora de mim como alguém sonhando
,
e eu e tudo o que de mim sabia desaparecera 
e ficara um sítio vazio
onde as últimas horas da tarde 
como aves extenuadas pousavam.



Manuel António Pina
TODAS AS PALAVRAS poesia reunida
Assírio & Alvim
 

When it happens,


with my eyes closed. When I trip
over your clothes on the floor
I will lay there as though that is where

I will sleep. I will talk to the couch cushions
as though they are you. I will drive you
to work every morning even though you are not

in the car. I will call random numbers
and ask strangers how their days were.
I will still make too much

food for dinner. I will still try to fall asleep
on my back. When anyone asks
how you are, what you’re doing,

where you’ve been for the past few weeks,

I will lie.

 

neil hilborn