A dor não humaniza ou enobrece,
não faz de nós melhores nem nos salva,
nada a justifica nem a invalida.
A dor não perdoa nem imuniza,
não fortalece ou dulcifica a alma,
não cria nada e nada a destrói.
A dor existe sempre e volta sempre,
nenhum dos seus actos será o último
e todos podem ser definitivos.
A dor mais terrível consegue sempre
ser mais intensa ainda e ser eterna.
Vai sempre acompanhada pelo medo
e ambos se alimentam um ao outro.
Amalia Bautista
Estou Ausente
Averno
'mantém o equilíbrio.'
Todos os dias digo, sussurrando,
mantém o equilíbrio. Tudo espreita,
tudo assusta, a vida inteira pende-te
de um frágil fio e de uma sorte injusta.
A tua vontade não pode muito.
Não percas pé. Mantém o equilíbrio.
Amalia Bautista
Estou Ausente,
Averno
A casa da neblina
Matthew G. Beall,
This is the End 2011
Entraram para a casa da neblina.
Os seus olhos foram-se acostumando
aos contornos indefinidos. Tudo
era impreciso, tudo era difuso.
Também se iam vendo um ao outro
sem contrastes, os rostos não mudavam,
as expressões eram sempre as mesmas,
sempre veladas pela mesma bruma.
Esqueceram-se ambos do mundo lá fora,
e da luz e da dor e da alegria,
da mentira, da emoção, dos beijos,
da amizade e do amor. Negaram
qualquer verdade ou perfil que os ferisse.
E ficou-lhes ambíguo o coração.
Amalia Bautista
Estou Ausente,
Averno
As poucas palavras
Nós. Abril, 2013
Foi um dia, e outro dia, e outro ainda.
Só isso: o céu azul, a sombra lisa,
o livro aberto.
E algumas palavras. Poucas,
ditas como por acaso.
Eram contudo palavras de amor.
Não propriamente ditas,
antes adivinhadas. Ou só pressentidas.
Como folhas verdes de passagem.
Um verde, digamos, brilhante,
de laranjeiras.
Foi como se de repente chovesse:
as folhas, quero dizer, as palavras
brilharam. Não que fossem ditas,
mas eram de amor, embora só adivinhadas.
Por isso brilhavam. Como folhas
molhadas.
Eugénio de Andrade