Neste preciso tempo, neste preciso lugar


No princípio era o Verbo
(e os açúcares
e os aminoácidos).
Depois foi o que se sabe.
Agora estou debruçado
da varanda de um 3.º andar
e todo o Passado
vem exactamente desaguar
neste preciso tempo, neste preciso lugar,
no meu preciso modo e no meu preciso estado!

Todavia em vez de metafísica
ou de biologia
dá-me para a mais inespecífica
forma de melancolia:
poesia nem por isso lírica
nem por isso provavelmente poesia.
Pois que faria eu com tanto Passado
senão passar-lhe ao lado,
deitando-lhe o enviesado
olhar da ironia?

Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?

Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Lá em baixo, na rua, passa para sempre
gente indefinidamente presente,
entrando na minha vida
por uma porta de saída
que já dá para a memória.
Também eu (isto) não tenho história
senão a de uma ausência
entre indiferença e indiferença.

Manuel António Pina
Todas as Palavras, Poesia Reunida
Assírio & Alvim 


que se sublinhe em jeito de "note to self", para todas as vezes que o Passado irrompe pelas janelas do Presente adentro.  

Café do Molhe

Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

porquê a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.


Manuel António Pina
Todas as Palavras, Poesia Reunida
Assírio & Alvim 

Parece que Lucrécio dizia...


o olhar saboreia o morno vinho
envolve teus cabelos, bebe no teu rosto, adormece
dormente onde tu e as aves vêm pernoitar
aqui sentado, neste restaurante de praia
mosquitos, aves reclinadas, talvez palmeiras envelhecidas como eu
a paisagem é um plano a preto e branco de filme neo-realista
pregos ferrugentos, madeiras soltas, a boca rente às areias
resíduos calcários de passos pelas ervas altas
águias, soberbas e lentas.

(o puto move-se, apertado nas calças finas, como se tivesse o corpo e os movimentos forrados por uma película em matéria finíssima, transparente, deixando contudo aperceber as modulações de seu corpo-rebuçado)

bebo, apetece-me gritar no horizonte do meu filme mudo
embriagado e desfeito, olho
aves irradiando luz, cordas enceradas pela transpiração das mãos
as vozes dos homens numa rebentação distante da ressaca
as vozes dos homens puxando os barcos: só o mar das outras terras é que é belo

em grande plano
ocupando-me por completo o écran desfocado dos olhos
o algodão pobre de tua camisa, as unhas roídas
os dedos duros engordurados, o buço macio
despontando num desafio que eu aceito

espero que a noite venha com seus ínfimos sóis, e solte transparentes borboletas cobertas de mel
parece que só assim, dizia Lucrécio
tua imagem permanecerá perto de mim, e a doçura do teu nome insinuar-se-á
gota a gota, junto ao coração

Al Berto
Poemas com Cinema,
Assírio & Alvim 

'faz de mim o que quiseres, dobra o cabo dos trabalhos e atira-te de cabeça'


Eras mesmo a fonte de tudo, pelo menos
naquele dia a que chamámos perfeito.
Os dias tinham-se entranhado nos dias,
a tal ponto que a vida era só dias, dias
a seguir uns aos outros. Apenas dias.
De olhos vendados e sem bater numa única
parede, pegados a isto, ao cheiro reconhecido
só quando um dos corpos se afasta.
Sente-se a falta, eu farejo como um cão
e depois sento-me triste a um canto
com um livro na mão. Mas naquele dia
que ambos classificámos de perfeito
eu pude ver a vida ali desdobrada em duas
à minha frente. E a tua inocência poderosa
a dizer-me uma vez sem exemplo faz
de mim o que quiseres, dobra o cabo
dos trabalhos e atira-te de cabeça.

Helder Moura Pereira
via blogue poesia


I'm so glad we did it...