ou como as horas se atropelam para chegar até ti.


PAUSA

Parecia-me que este dia
sem ti
devia ser inquieto,
escuro. Em vez disso está repleto
de uma estranha doçura, que aumenta
com o passar das horas –
quase como a terra
após um aguaceiro,
que fica sozinha no silêncio a beber
a água caída
e pouco a pouco
nas veias mais profundas se sente
penetrada.


A alegria que ontem foi angústia,
tempestade –
regressa agora em rápidas
golfadas ao coração,
como um mar amansado:
à luz suave do sol reaparecido brilham,
inocentes dádivas,
as conchas que a onda
deixou sobre a praia.
 
 
Antonia Pozzi
(trad. Inês Dias)
Morte de uma Estação,
Averno
 
 
via João César

os ponteiros moveram-se a custo pelas horas, as horas teimaram em não passar e os dias cresceram semanas... - “A alegria (...) regressa agora em rápidas golfadas ao coração," - amanhã.

 

"como se entre mim e ti o espaço não contasse"


é apenas a forma que tens de me olhar,
sem que eu dê por isso, como se entre mim
e ti o espaço não contasse; ou é
o risco no cabelo, antes de chegar à trança,
indicando o caminho para o sonho
em que nos abraçamos; ou é o teu sorriso,
num esboço de algo que se perdeu
entre um e outro café, por entre
perguntas e conversas; ou é o fundo
dos teus olhos em que adivinho
a noite, e tu me dizes que
o dia está para nascer; ou
são as tuas pálpebras, em que me
escondes a inquietação com que
fechas os olhos, quando as certezas
do coração te ferem; ou és tu
no puro instante em que te vejo,
e só tu existes.


Nuno Júdice 


via 1º Esquerdo

Com que vozes se encontra a gente quando o pavor se faz música...


Estremece-se às vezes desde o chão,
Por se ter uma navalha no bolso:
por o sexo ser sumptuoso:
por causa dos buracos luminosos na camisa,
Tem-se medo do poder
da nudez,
A finura da carne: uma unhada
no coração:
o modo de fazer rodar o quarto:
o barulho que se ouve nos canos onde
a água vive - tudo
sob a ameaça de uma riqueza
brusca
em nós, Quando um raio se desencadeia
pela coluna vertebral
abaixo, O golpe entre as madeixas
frias, Toca-se na cama:
e nunca mais se dorme, Toca-se
onde os pulmões se cosem à boca para gritar,
Às vezes tem-se o dom de fincar os pés na paisagem
em massa, Um feixe
desenfeixa-se no avesso - estala
fora, Com que vozes se encontra a gente
quando
o pavor se faz música
ordem
exercício nominal?,
Arrancamo-nos a tudo como
se arranca a unha
a um dedo: ou o dedo à mão: ou à mão
ao gesto
amassando a terra como se penteia,
Pente que reabre a chaga e a alastra,
Que a aprofunda
como o sangue aprofunda a claridade
pequena
de um lenço, se o lenço
se molha na costura que sangra
perpetuamente, A coroa irrompe da cabeça
pelo ímpeto
da realeza animal, O choque de um astro
calcinaria tudo
- o ceptro que nos crava no mundo
o manto
o escudo
os anéis como nós de dedos,
Morre-se de alta tensão,
É o relâmpago de um troço avistado,
As voragens à força de janelas,
ou é Deus que nos olha em cheio: dentro


Herberto Helder 
Ofício Cantante,
Assírio & Alvim 

H


Sei que dez anos nos separam de pedras
e raízes nos ouvidos

e ver-te, ó menina do quarto vermelho,
era ver a tua bondade, o teu olhar terno
de Borboleta no Infinito

e toda essa sucessão de pontos vermelhos no espaço
em que tu eras uma estrela que caiu 
e incendiou a terra

lá longe numa fonte cheia de fogos-fátuos.


António Maria Lisboa
Poesia,
BI