Estava capaz de ter uma conversa contigo

Estava capaz de fazer chá e tomar vitamina C.
Apetece-te uma chávena de chá?
...
Estava capaz de ficar muito sossegadinho a um canto, parando de inventar motivos
para andar de um lado para outro.

Estava capaz de ter uma conversa contigo.
Apetece-te uma conversa?

Sam Shepard


Não podia ter sido mais apropriado, cruzar o Sam Shepard com o meu sonho de ti. Voltar em turbilhão a um passado que já me parece inventado, como se tudo, afinal, não tivesse sido mais do que ilusão.
'Estava capaz de ter uma conversa contigo', mas repito-o a tinta, onde não me podes ouvir... ou onde (ainda) existo. 


 

Quem vive para o amor está lixado


Quem vive para o amor está lixado
não tarda, que o amor é um amplo espaço
vazio sem cor nem forma e um silêncio
tumular por dentro. Mau, muito mau
para se levar alguém. Mas tu vieste
e de imediato tudo fôra já decidido
como quando alguém nasce e olha em torno
– pouco importa se estranha ou não a paisagem.
Tínhamos o nosso espaço e tínhamo-nos
a nós, um ao outro por natural companhia
era o amor, tudo indicava. Podia-se morrer
disso. E tínhamos o tempo todo para ver.


Rui Caeiro,
O Quarto Azul e Outros Poemas
Letra Livre
2011 

modo de amar

prometo ser-te fiel se mo fores 
também, não é certo que mo venhas a 
ser. por isso, já to perdoo 

prefiro partir assim para o resto da 
vida. assim, com os olhos abertos à 
frustração e talvez à vulnerabilidade 

não prevejo nada em concreto, acredita, 
não tenho olhos para outras moças, 
só o digo assim por ser verdade 

que tarde ou cedo havemos de encontrar 
nos outros motivos de inusitado 
interesse, e depois, pergunto, 

vale mais que acordemos um amor 
sobreposto ao futuro, um amor agora 
que tenha conhecimento do futuro 

e não esperar mais nada senão 
a verdade. a decadente verdade que 
chega já depois dos primeiros beijos 


valter hugo mãe

brincávamos a cair nos braços um do outro


brincávamos a cair nos 
braços um do outro, como faziam 
as actrizes nos filmes com o marlon 
brando, e depois suspirávamos e ríamos 
sem saber que habituávamos o coração à 
dor. queríamos o amor um pelo outro 
sem hesitações, como se a desgraça nos 
servisse bem e, a ver filmes, achávamos que 
o peito era todo em movimento e não 
sabíamos que a vida podia parar um 
dia. eu ainda te disse que me doíam os 
braços e que, mesmo sendo o rapaz, o 
cansaço chegava e instalava-se no meu 
poço de medo. tu rias e caías uma e outra 
vez à espera de acreditares apenas no que 
fosse mais imediato, quando os filmes acabavam, 
quando percebíamos que o mundo era 
feito de distância e tanto tempo vazio, tu 
ficavas muito feminina e abandonada e eu 
sofria mais ainda com isso. estavas tão 
diferente de mim como se já tivesses 
partido e eu fosse apenas um local esquecido 
sem significado maior no teu caminho. tu 
dizias que se morrêssemos juntos 
entraríamos juntos no paraíso e querias 
culpar-me por ser triste de outro modo, um 
modo mais perene, lento, covarde. Eu 
amava-te e julgava bem que amar era 
afeiçoar o corpo ao perigo. caía eu 
nos teus braços, fazias um 
bigode no teu rosto como se fosses o 
marlon brando. eu, que te descobria como se 
descobrem fantasias no inferno, não 
queria ser beijado pelo marlon brando e 
entrava numa combustão modesta que, às 
batidas do meu coração, iluminava o meu 
rosto como lâmpada falhando 

a minha mãe dizia-me, valter tem cuidado, não 
brinques assim, vais partir uma perna, vais 
partir a cabeça, vais partir o 
coração. e estava certa, foi tudo verdade 


valter hugo mãe