Os Aparecidos

Foi mesmo esta manhã,
no meio da rua.


Eu esperava
com os outros, junto ao sinal de atravessar,
e de súbito senti como um leve roçar,
como quase uma súplica na manga.
Depois,
enquanto precipitadamente atravessava,
a visão de uns olhos terríveis, exalados
não sei de que vazio doloroso.

Acontece que isto sucede
demasiado a miúdo.
E todavia,
pelo menos em alguns de nós,
fica um rasto de mal-estar furtivo,
um certo sentimento de culpa.
Lembro
também, numa formosa tarde
em que voltava para casa... Uma mulher
estatelou-se a meu lado, encolhendo-se
sobre si mesma, silenciosamente
e com uma incrível lentidão - agarrei-a
pelas axilas, um momento o rosto,
velho, quase pegado ao meu.
Depois, sem compreender ainda,
ergueu uns olhos onde nada
se lia, senão a pura privação
a dizer-me obrigada.
Voltei-me
a custo, a vê-la rua abaixo.

Não sei como explicá-lo, é
como se tudo,
como se o mundo à minha volta
estivesse parado
mas continuasse em movimento
cinicamente, como
se nada, como se nada fosse verdadeiro.
Cada aparição
que passa, cada corpo a sofrer
não anuncia morte, diz que a morte estava
já no meio de nós sem o saber.


Vêm
de lá, do outro lado do fundo sulfuroso,
das surdas
minas da fome e da multidão.
E nem sequer sabem quem são:
desenterrados vivos.

Jaime Gil de Biedma
Antologia Poética,
Cotovia 

Gostaria de descrever


gostaria de descrever a emoção mais simples
alegria ou tristeza
mas não como os outros fazem
procurando chegar a dardos de chuva ou sol

gostaria de descrever a luz
que está a nascer em mim
mas sei que não se parece
com nenhuma estrela
porque não é tão brilhante
nem tão pura
e é inconstante

gostaria de descrever a coragem
sem arrastar atrás de mim um leão poeirento
e também a ansiedade
sem agitar um copo cheio de água

dizendo de outra maneira
daria todas as metáforas
em troca de uma palavra
arrancada do meu peito como uma costela
por uma palavra
contida dentro dos limites
da minha pele
mas aparentemente isso não é possível

e só para dizer - eu amo
corro em círculos como um louco
apanhando mãos cheias de pássaros
e a minha ternura
que afinal de contas não é feita de água
pergunta à água por um rosto

e a ira
diferente do fogo
pede-lhe emprestada
uma língua loquaz

tudo tão emaranhado
tudo tão emaranhado
em mim
que o senhor de cabelo branco
desfez o emaranhado de uma vez por todas
e disse este é o sujeito
e este é o complemento

adormecemos
com uma mão debaixo da cabeça
e com a outra
num aterro de planetas

os nossos pés abandonam-nos
e tocam a terra
com as suas raízes minúsculas
que de manhã
arrancamos dolorosamente

Zbigniew Herbert
Escolhido pelas estrelas,
Assírio & Alvim