Não te esqueças de me visitar

não te esqueças de me visitar. traz-me as fotografias de
Veneza e aquele poema que me escreveste quando o nosso
amor ainda era o que de mais magnífico acontecera nas nossas
vidas e no mundo.

havemos de nos sentar nas mesmas cadeiras como se fossem 
as mesmas manhãs de sábado. havemos de olhar os mesmos 
telhados, divagar sobre a eternidade dos gestos e jurar 
comovidamente que as nossas almas se tocaram de uma 
maneira única e inesquecível.

eu hei-de esconder-te a minha interminável solidão e tu hás-de
demonstrar-me, muito inocentemente, nas tuas palavras tão
cheias de vida e de juventude, como a morte nos descobre
mesmo nos lugares mais altos.

 

gil t. sousa

estive tão longe de ti

estive tão longe de ti
que não pensei sequer lembrar o teu nome
percorri distâncias escuras, estradas imóveis
onde circulava o peso sem cor do esquecimento
e se curvavam as pedras à boca do destino
 
a solidão assustava-me, queimava-me a pele
quero dizer-te que não mais vi ternura
que os meus pés ganharam idade a um ritmo
que não pude conter, acompanhar, escrever-te
 
sim, fiz-me não te escrever
para que o teu corpo não ouvisse o vento
e as ondas fossem quebrar ao centro dos oceanos
para que uma palavra não pousasse no teu rosto
e levasse a luz dos teus olhos e a vida nos teus lábios

arranquei de mim a morada que eras tu
desisti dos pássaros, afundei barcos, lâminas.
apaguei o calor dos porões como se uma vela
pudesse perigosamente insistir na permanência
desse mundo que era a minha voz, éramos nós

estive tão longe de ti
mas deixa que agora te nomeie entre as nuvens
e traga para dentro de mim
o aroma que era o teu corpo nas manhãs a dois
deixa que venha morrer junto de ti
no ventre do amor que prometemos ao infinito
 

Vasco Gato

 

encontrar-te tão assim de visita


(...)
Estava a porta entreaberta,

não bati sequer. Sempre me espanta encontrar-te tão
assim de visita, na tua própria casa, em ti.
Era difícil tocar-te, mexer-te. Na parede branca
oscilam os ramos, as sombras de ramos da alameda.
Era mais fácil beijar-te, por falta de palavras. Tão profundo
é o silêncio, que se ouvem todos os rumores,
o ladrar de um cão, o silvo de uma fisga,
a pancada dos ramos no entardecer, lembrando
um sino submarino. Pensava que amar-te (querer-te livre)
começava na ponta dos dedos e ia até às ideias mais abstractas,
que o teu corpo era a melhor expressão possível de ti, e ainda
muda, como um hieróglifo enterrado
na areia do teu deserto favorito (algures na anatólia),
pensava que serias um dia aquela singular memória
que nos separa, um breve instante, de tudo quanto vemos,
e muitas outras noites, acordado junto ao teu corpo ausente
seriam como esta: vidros abertos sobre um ror de estrelas,
nuvens ligeiras navegando em direcção ao mar,
o jovem coração, liso detrás das grades, dos ossos.
(«Expressão» é tão inexacto! Na verdade existes
no teu corpo, com todo o passado embrulhado
na pele sensível, no calor animal do gemido que
às vezes sopra dos teus sonhos, e até o futuro
misteriosamente cabe no exíguo volume
entre mãos.) (...)

António Franco Alexandre, «Uma fábula», 2001