4 de maio

Hoje, um homem aproximou-se de mim. Vestia fato e usava gravata, mas eu reconheci-o de imediato.

Era um homem do Instituto. Estava disfarçado de pessoa normal.

Perguntou-me as horas e eu disse: Tenho dois trovões dentro dum envelope dos correios.
O da esquerda é de madeira e o do meio é fêmea.
É assim que nascem as cartas.

Ele, surpreendido com a minha resposta,
foi-se embora e não me internou.

 

Mas, por via das dúvidas, fui para casa com os sapatos calçados nas mãos.




O livro do ano
Afonso Cruz
Alfaguara

das leituras enroladas.

ando há dias com "a desumanização" na mala. terminei a última leitura - "A Minha Pequena Livraria" de Wendy Welch. Ed. noites brancas - e ando a ganhar coragem para esventrar o valter. perdão, o do valter. Ler apetece sempre, pior são os dias em que enrolamos leituras, e há razões mais legítimas do que outras para o fazer. não, nada tem a ver com a polémica que se levantou em torno de uma entrevista do autor. não a vou pronunciar. tem a ver com o arrebatamento que os livros do valter hugo mãe trazem consigo. e este já vem com carga emocional de leituras partilhadas.
respiro fundo umas quantas vezes enquanto lhe olho a capa de soslaio. passo a mão pelo objecto-livro e o meu coração já está acelerado sem chegar ao primeiro parágrafo. é mais ou menos assim o ritual do começo de um livro. é uma espécie de religião. 
é saber que depois disto, não somos os mesmos. 

 

bibliotecas cheias de fantasmas.

A biblioteca protege da hostilidade exterior, filtra os ruídos do mundo, atenua o frio que reina em volta, mas confere, igualmente, uma sensação de omnipotência. Porque a biblioteca faz recuar as pobres capacidades humanas: ela é um concentrado de tempo e de espaço. Reúne nas suas prateleiras todos os estratos do passado. Ali estão os séculos que nos precederam.
«A escrita (...) grande, muito grande ao permitir-nos conversar com os mortos, com os ausentes, com aqueles que não chegaram a nascer, através de todas as distâncias do tempo e do espaço».
— jacques bonnet, «bibliotecas cheias de fantasmas». Trad. de José Mário Silva

Bonsai

«No final ela morre e ele fica sozinho, embora na realidade tivesse ficado sozinho vários anos antes da morte dela, de Emília. Digamos que ela chama-se ou chamava-se Emília e que ele chama-se, chamava-se e continua a chamar-se Júlio. Júlio e Emília. No final Emília morre e Júlio não morre. O resto é literatura:»

Alejandro Zambra

 
Um livro dentro de um livro... que cabe num conto. É mais ou menos isto. Lê-se, na badana, que Jorge Luís Borges aconselhava a escrever como se se estivesse a redigir o resumo de uma obra já escrita. E é isso que Alejandro Zambra faz com 'bonsai'. Um romance-resumo, um romance-bonsai.  
É a história de Júlio e de Emília, mas mais de Júlio com Emília... e sem Emília. Um livro recheado de referências literárias. 

 

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